É possível aprovar uma lei por crowdsourcing?

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4 min readOct 31, 2016

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Por Sérgio Branco*

(Traduzido do original em inglês por Marianna Jardim)

A criação colaborativa de normas vai ao Congresso

Em 2015, o Congresso Nacional aprovou pouco mais de 160 leis. Entre elas, uma que honra humoristas, outra que declara o dia 26 de junho como o dia nacional da consciência do primeiro voto e uma ainda que comemora o dia do milho.

Idealmente, para o benefício da sociedade, legisladores são eleitos para legislar. Algumas leis são fáceis de passar — não vejo muita discussão sobre o melhor dia para celebrar o milho (que é, aliás, no dia 24 de maio, de acordo com Congresso brasileiro), apesar de tudo ser possível. No entanto, com a complexidade do mundo contemporâneo, os indivíduos ficam cada vez mais sofisticados, a tecnologia desafia a nossa certeza sobre aspectos da vida cotidiana e o que antes era de fácil entendimento se torna repleto de sutilezas. Legislar a internet certamente não é tão fácil quanto decidir o melhor dia para se louvar a poesia (o que, por curiosidade, é feito nacionalmente no dia 31 de outubro). De fato, nada é muito poético quando interesses opostos estão em questão.

A falta de regulação da internet no Brasil estava levando a algumas decisões estranhas. O YouTube, por exemplo, foi tirado do ar por causa de um vídeo que, alegadamente, violava a intimidade de uma modelo. Diante dessas circunstâncias, seria difícil convencer companhias inovadoras de internet a basearem suas operações no Brasil, uma vez que qualquer coisa poderia acontecer se tratando de regulação de internet. O chamado princípio da segurança jurídica era não-existente.

No entanto, como poderíamos delegar a deputados o poder de decidir sobre como a internet deveria ser regulada, considerando que esta é uma questão tão particular? Considerando que representantes do Congresso geralmente não entendem muito de tecnologia e aqueles que entendem estão frequentemente fora do âmbito de tomada de decisão democrática, nada parecia mais razoável do que usar a internet para regular a si mesma.

O ano era 2009 e a tecnologia não era desenvolvida como é hoje. Uma parceria entre um grupo de professores da FGV — que hoje estão no ITS — e o Ministério da Justiça levou à criação de uma plataforma onde se daria a discussão de uma nova lei desde o início. A plataforma ainda está disponível aqui.

Durante o primeiro estágio, o debate foi focado em ideias, princípios e valores. Os tópicos de discussão foram privacidade, liberdade de expressão, a responsabilidade de intermediários, neutralidade da rede, infraestrutura, entre outros. Cada parágrafo de texto produzido pelo Ministério da Justiça permaneceu acessível por alguns meses para que qualquer um que desejasse participar pudesse inserir comentários. Foram recebidas também contribuições de países estrangeiros.

Ao final da primeira fase, o Ministério da Justiça compilou as contribuições e preparou o rascunho da lei que seria a base para a segunda parte do projeto. Isso ocorreu no primeiro semestre de 2010 e consistiu em uma discussão sobre o próprio rascunho do texto. Mais uma vez, cada artigo, parágrafo ou item permaneceu disponível para a submissão de comentários de qualquer parte interessada. Um resumo das contribuições oferecidas resultou no Projeto de Lei 2.126/2011, que foi levado ao Congresso para discussão.

O último voto do Projeto de Lei, no entanto, foi adiado mais de 20 vezes. Eram muitos os interesses econômicos em debate, especialmente relativos à neutralidade da internet e à responsabilidade dos intermediários. Ela foi finalmente aprovada no dia 23 de abril de 2014 e assinada pela então presidente Dilma Rousseff durante a conferência Net Mundial, em São Paulo. O Projeto de Lei se tornou a Lei 12.965/14.

Como resultado desse processo, o Brasil finalmente tinha uma lei regulatória da internet. O Marco Civil (como é geralmente chamado) é composto por 32 artigos. A primeira parte diz respeito a direitos, princípios e garantias. Desde então, temos normas que lidam com a neutralidade da rede, proteção de dados, responsabilidade dos intermediários, e o papel do Estado.

No entanto, como qualquer um pode imaginar, são muitos os problemas resultantes da aplicação da lei. A interpretação errônea do Marco Civil está levando a alguns mal-entendidos, e não tem impedido o bloqueio de aplicativos imensamente populares mais de uma vez. Uma breve visão da lei e de como as Cortes brasileiras a estão interpretando será o tema dos nossos próximos textos.

Série introdutória sobre Direito e Internet no Brasil: Parte 2/8

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Este artigo foi originalmente publicado em inglês para o site canadense DroitDu.net. Acesse aqui.

* Sérgio Branco é diretor do ITS Rio

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