Como construir melhores práticas na web

Ana Luisa Figueiredo* e Pedro Saliba**

ITS Rio
ITS FEED

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Imagem do livro "All Watched Over by Machines of Loving Grace" de Alexandre Carvalho, inspirado no documentário homônimo de Adam Curtis

Parte I: o status quo

“A atenção é um recurso finito, e como escolhemos utilizar nossa atenção online é, de certa maneira, um reflexo direto dos caminhos que a sociedade tomou em uma era em que o acesso à informação é ilimitado.”- Charles Broskoski para o The Creative Independent. (tradução livre)

Você já refletiu sobre os seus hábitos online? Quantas horas você passa em redes sociais durante o dia? Que tipo de coisas você aprende na internet? Sabe o que você, como indivíduo, representa no mundo virtual? Assim como fazemos esforço para criar hábitos saudáveis, como praticar exercícios físicos, a nossa existência on-line também merece cuidado e observação.

Atualmente, a maioria dos usuários da internet limita seu uso à navegação em redes sociais. Muitas pessoas, inclusive, entendem que a internet se resume a estas. O conteúdo que recebemos destas redes é pré-digerido por algoritmos, para que nosso comportamento, nossas ideias, insights e conclusões sejam previsíveis.

Wake up, sheeple! — Imagem do filme "Tempos Modernos" de Charles Chaplin

Nos tornamos incapazes de administrar nossa atenção online — e isso é intencional. Os aplicativos e redes sociais mais utilizados são desenhados para prender nossos olhos nas telas o máximo de tempo possível. A lógica é estritamente econômica: o modelo de negócios dessas empresas costuma ser a venda de anúncios altamente perfilarizados. Quanto mais tempo você passa nas redes, melhor as empresas sabem a respeito de seus gostos e hábitos. O documentário “O Dilema das Redes Sociais” demonstra bem como funciona esse sistema, denominado capitalismo de vigilância pela professora Shoshana Zuboff.

Passamos horas em sites de comprimento infinito onde informação e conteúdo não se transformam em conhecimento, e sim lucro para plataformas digitais. Deixamos que as redes transformem a maneira como nos comportamos, perdemos a nossa espontaneidade e nossa capacidade de sermos genuínos porque só agimos de acordo com a parcela da realidade que os algoritmos nos permitem acessar.

Como é esperado que sejamos cada vez mais produtivos se só temos acesso a um conteúdo escolhido, de maneira cada vez mais arbitrária, por plataformas? Como teremos grandes ideias se estamos presos em bolhas de opinião e informação? O que estamos deixando de ver?

O artigo “The Web We Have to Save”, de Hossein Derakhshan, expressa bem o momento que vivemos. O autor é um blogueiro iraniano que foi preso entre 2008 e 2014 após liderar um movimento contra a censura em seu país. Ao sair da cadeia viu como o ambiente virtual tinha sido alterado. Se antes as pessoas ativamente buscavam blogs e outros meios de informação, agora a dinâmica é dominada pelas redes sociais. Abre-se o feed de preferência e todo conteúdo que provavelmente queremos consumir estará à nossa disposição (tradução livre):

“A web não foi planejada para ser uma forma de televisão quando foi inventada. Mas por bem ou por mal, está cada vez mais semelhante a uma: linear, passiva, programada e auto centrada.

Quando entro no Facebook, minha televisão pessoal é ligada. Tudo que eu preciso fazer é rolar: nova foto de perfil, pequenos textos de opinião sobre as atualidades, links para stories com legendas curtas, propagandas, e, é claro, vídeos que tocam automaticamente. Mas eu continuo dentro do Facebook e ele continua a me transmitir o que deseja […] Este não é o futuro da web, este futuro é a televisão.

A artista Louise Drulhe constrói trabalhos investigativos sobre a arquitetura da web, nos fazendo refletir sobre o acúmulo de dados de usuários por grandes plataformas em termos geográficos. Sua obra “The Two Webs” demonstra como as plataformas monopolizam o fluxo de informação online pela internet: os grandes vales são bigtechs, empresas que monopolizam o trânsito de dados pela internet.

Não por acaso são as mesmas que operam no capitalismo de vigilância, criando feeds infinitos com conteúdo que provavelmente queremos consumir. Com informações mais precisas sobre nossos hábitos e gostos, melhores produtos e serviços são oferecidos.

Por isso é importante promover uma reflexão sobre o que representamos enquanto indivíduos na internet. Assim como entendemos nosso papel em uma sociedade democrática devemos entender quem somos no mundo virtual, quais são as consequências de nossas ações e a quem estas beneficiam.

Gráfico da arquitetura da web feito por Louise Drulhe em seu projeto The Two Webs

E esta discussão não é tão recente, em 1994 a analista de recursos e poeta Carmen Hermisillio escreve o ensaio “Pandora’s Vox: On Communities in Cyberspace”. Fruto desta reflexão, ela diz (Tradução por Vinícius Scott):

Já vi tantas pessoas vomitarem conteúdo de si mesmas online e eu fazia isso também, até perceber que havia me tornado um commodity. Comodificação significa que você transforma algo em um produto com um valor em dinheiro. No século XIX, commodities eram produzidas em fábricas, as quais Marx chamou de “os meios de produção”. Capitalistas eram pessoas que detinham esses meios de produção e os commodities eram feitos pelos trabalhadores, que eram majoritariamente explorados. Eu criei meus pensamentos internos e tornei-as um “meio de produção” para a corporação detentora do fórum onde postava e o commodity estava sendo vendido para outras commodities/ consumidores como entretenimento. Isso significa que eu vendi minha alma como se fosse um tênis e recebi nenhum lucro pela venda da minha alma. Pessoas que postam com frequência em fóruns sabem que são equipamentos de fábrica e “tênis”, e às vezes enviam emails sobre como suas contribuições não são apreciadas pelos gestores.

E como se isso não fosse suficiente, todas minhas palavras se tornaram imortais por meio de backups em fitas cassete. Além disso, eu pagava dois dólares por hora para o privilégio de me comodificar e me expor. Pior ainda, estava me sujeitando à possibilidade de escrutínio do pessoal amigável do FBI: eles podem, e eles já baixaram praticamente tudo que desejarem. A retórica do ciberespaço é da linguagem da libertação. A realidade é que o ciberespaço é uma ferramenta altamente eficiente de vigilância. Uma ferramenta com a qual as pessoas voluntariamente se relacionam.

Imagem do livro “All Watched Over by Machines of Loving Grace” de Alexandre Carvalho, inspirado no documentário homônimo

Estabelecer questionamentos sobre a sua função enquanto indivíduo no mundo virtual é fundamental na busca por exercer melhores práticas. Pela natureza versátil da web, existe uma enorme quantidade de ferramentas que podem auxiliar na administração de um melhor uso do tempo na internet, mas antes de manipulá-las é importante compreender e identificar quais são os tipos de fluxos de conteúdo virtuais.

Parte II: existe vida além dos rios

Primeiro, precisamos entender que nem todo conteúdo que consumimos e produzimos na internet tem o mesmo ritmo, a mesma função. Em seu artigo “Of Digital Streams, Campfires and Gardens”, Tom Critchlow caracteriza os ambientes de agregação de conteúdo entre rios, fogueiras e jardins. Essa é uma ótima imagem para categorizar nossos hábitos e rotinas online.

As redes sociais em seu fluxo infinito de conteúdo configuram os rios (streams). Os rios são caracterizados por sua característica linear, onde o usuário tem poder de ação, mas estas são partes de uma narrativa e o fluxo do rio é composto dessas narrativas. O rio não permite que você crie reflexões profundas ou gere conhecimento porque o fluxo de conteúdo é muito rápido e infinito.

Pense em como o feed do Instagram funciona: você abre o aplicativo e não tem total controle a respeito do que recebe. Claro, são perfis que você escolheu seguir, mas sua ordem e linearidade não têm o ritmo definido pelo usuário ou usuária final. O mesmo se repete no Twitter, Facebook, Pinterest… ao entrar, somos tomadas e tomados pelo fluxo contínuo de informação em massa. As ações são rápidas (curtir, comentar, compartilhar…) e dificilmente retomamos essas informações posteriormente. Elas são substituídas por novas, como as águas de um rio que se renovam a despeito de nossa intenção.

As fogueiras são como blogs, grupos no facebook, comunidades de assuntos específicos no Slack e threads do reddit. São locais de convergência. Elas têm uma duração que não se estende durante anos no tempo, mas tempo o suficiente para permitir que temas interessantes sejam descobertos.

Em blogs você pode se auto-referenciar e descobrir como foi seu amadurecimento ao longo do tempo sobre certos assuntos, por exemplo. Em grupos de interesse você pode encontrar mais referências sobre temas específicos.

Por fim, temos o nosso objeto de foco, os jardins.

Ilustração por Everest Pipkin

O pintor Juan Miró descreve seu processo criativo fazendo uma analogia com a jardinagem (tradução livre):

“As coisas acontecem vagarosamente. As coisas seguem seu curso natural. Elas crescem, amadurecem. Eu preciso fertilizar, Eu preciso molhar. O amadurecimento acontece na minha mente. Então estou sempre trabalhando em várias grandes coisas ao mesmo tempo.”

Jardins são os lugares onde você conseguirá colher ideias através do conhecimento, mas isto leva tempo. Em oposição aos rios, que requerem nossa reação imediata sobre acontecimentos correntes, os jardins são lugares onde referências são guardadas e consultadas diversas vezes.

Jardim em cena do filme de Hayao Miyazaki "Kaze No Tani no Nausicaä", 1984

Em sua entrevista para o The Creative Independent, o artista Charles Broskoski fala sobre o desenvolvimento da plataforma para pesquisa Are.na (tradução livre):

[…]existe um tipo de auto descoberta que acontece quando você visita novamente coisas que você acumulou durante um período de tempo. Você olha e começa a entender padrões no seu processo de pensamento.

[…]

a ideia do Stuart dizia que se você pudesse compartimentalizar o conhecimento, quebrá-lo em seções você poderia utilizá-las para resolver problemas de diferentes maneiras.

O jardim nos permite criar conexões inusitadas entre diferentes tipos de conhecimento, amadurecer pensamentos e ideias através de um consumo dosado e curadoria de informação. O jardim requer que estejamos em contato com nossos interesses e com o que move nossa curiosidade, devemos buscar referências e não apenas consumir o que nos é apresentado, como nos rios.

Existem ferramentas como Pinterest, Pocket, Evernote e Are.na que facilitam a criação de jardins, mas é importante utilizar a criatividade para adaptar outras plataformas como o google keep. Mais do que as possibilidades que a ferramenta oferece, a sua intenção é o que determina as possibilidades de uso.

Ilustração de Maurice Sendak

Parte III: dieta de informação

Voltando ao artigo de Tom Critchlow, em sua publicação ele também apresenta um gráfico feito por Venkatesh Rao em sua thread “How to Actually Manage Attention Without Smashing Your Phone and Retreating to a Log Cabin”:

Gráfico por Venkatesh Rao

Este gráfico sugere que diferentes tipos de fontes de informação permitem que os usuários debatam temas distintos. Todos os tipos de informação (de baixa até alta latência) têm seu papel. É um erro pensar que podemos nos comportar como “great minds” o tempo todo, mas também não podemos discutir conteúdos das “great minds” apenas com conteúdo de redes sociais. Além disso, precisamos de aspiração. Sem a ambição de alcançar ideias, não adianta consumir conteúdos de alta latência.

Em resumo, a dieta de informação consiste em passear pelas diferentes fontes de conteúdo de forma dosada. Construir uma curadoria de conteúdos que nos permitam discutir ideias (o jardim) é fundamental para mantermos uma rotina de administração de atenção saudável. De acordo com Venkatesh “Você precisa de conteúdos de todos os níveis para conseguir trabalhar com qualquer um dos níveis”.

Parte IV: Slow Web e Slow Technology

A solução definitivamente não é negar todo e qualquer uso da internet, tal qual um ludismo contemporâneo. Recusar o uso de ferramentas digitais traria prejuízos em diversas esferas da vida, tanto profissionais como pessoais, especialmente no contexto pandêmico de hoje.

Toda a questão está no ritmo do uso. O movimento Slow Web — Web Lenta, em tradução livre — expressa bem essa pretensão. O nome remete diretamente à Slow Food ou Slow Fashion, contrastes com Fast Food e Fast Fashion, modelos de negócios conhecidos pela baixa qualidade, padronização e descartabilidade.

Assim como um hambúrguer do McDonald’s, um tweet ou foto do Instagram tem essas características. Novamente, a ideia não é deixar de entrar em redes sociais, mas ter um uso mais consciente delas. A Fast Web está o tempo todo com informações novas, exigindo que você faça as coisas e faça agora.

Em seu manifesto, Jack Cheng propõe que a Slow Web seja

“No tempo certo, não em tempo real. Ritmo, não aleatoriedade. Moderação, não excesso. Conhecimento, não informação. Essas são algumas das muitas características da Slow Web. Não é tanto uma lista exaustiva, mas sim uma sensação de estar mais à vontade com os produtos e serviços web em nossas vidas.”

Publicado em 2012, vemos que o texto tem sua atualidade comprovada.

Acompanhando o pensamento da Slow Web está o movimento Slow Technology, ou Slow Tech. Nesta linha são aplicados, além dos princípios da Slow Web, conceitos de desenvolvimento sustentável com recursos locais e de maneira comunitária (peer to peer) à produção de software e hardware.

Softwares que não fazem coleta de dados e não compartilham informações de usuários com terceiros. Tecnologias que são desenvolvidas de maneira sustentável e respeitando cada trabalhador envolvido em sua criação. Programas que apresentam jornadas de experiência do usuário objetivas, simples e cognitivamente adequadas. O movimento Slow Technology desenvolve boas práticas de criação de produtos digitais para um mundo hiperconectado.

Um exemplo interessante é a Low Tech Magazine. Uma revista digital que discute assuntos do mundo da sustentabilidade. Além de apresentar uma série de tutoriais, para que os leitores possam implementar soluções sustentáveis em seu cotidiano, o próprio servidor do site é alimentado por energia solar.

Esses conceitos vão de encontro direto ao discurso da produtividade, eficiência e proatividade das redes. Sim, diversas ferramentas tecnológicas nos auxiliam em tarefas rotineiras, mas a que custo? Precisamos mesmo estar em todos os debates, saber de tudo que acontece?

Arte por Estefania Loret de Mola

É fundamental ter um pensamento crítico sobre o uso excessivo que fazemos das redes sociais. Quem se beneficia com esse comportamento em massa? A web tem um grande potencial de ser uma força positiva em nossas vidas, que nos permite estender nosso armazenamento de conhecimento, estabelecer conexões ao redor do mundo, nos organizarmos em prol de uma sociedade que respeita o planeta e os seres humanos. Por que deixamos que a internet seja uma tecnologia que nos deixa frustrados, atenua nossas inseguranças e nos priva de reflexões e conhecimento? Passamos cada vez mais tempo conectados, temos que fazer o melhor das nossas atividades online.

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*Designer graduada pela PUC Rio. Cursou parte de sua graduação na California College of the Arts em São Francisco, onde trabalhou na revista AFAR como estagiária de artes. Desenvolveu seu projeto de conclusão de curso “Sistema de Representação Visual do Diálogo” a partir de seu interesse em diversas áreas como: linguistica, neurociência, tecnologia e literatura. Foi pesquisadora no LABMEMO (Laboratório Design, Memória e Emoção) na PUC Rio, onde desenvolveu e publicou o artigo “Fontes toscanas no Almanak Laemmert do Rio de Janeiro durante o século XIX”, publicado no 5º CIDI (Congresso Internacional de Design da Informação). É designer no departamento de Mídias do ITS. Se interessa por tecnologia, linguística, neurociência e cultura pop.

**Advogado e sociólogo, pesquisador da Associação Data Privacy Brasil de pesquisa na área de segurança pública. Divide seu tempo entre o trabalho com pesquisa e produção de conteúdo na internet. Criador do “Posso Processar?”, canal de educação jurídica popular e promoção de cidadania digital.

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O Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio estuda o impacto e o futuro da tecnologia no Brasil e no mundo. — www.itsrio.org