Empresa do bondinho quer proibir fotos do Pão de Açúcar

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7 min readDec 12, 2023

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Foto original editada para remover as instalações físicas do bondinho do Pão de Açúcar. Será que assim pode usar?
Foto original editada para remover as instalações físicas do bondinho do Pão de Açúcar. Será que assim pode usar?

Imagine se um dos principais pontos turísticos da sua cidade, situado em local público e que todo mundo conhece, se tornasse propriedade de uma única empresa. E que essa empresa começasse a perseguir quem tira fotos do lugar e posta em redes sociais. Cenário distópico? Infelizmente essa é a realidade do que está acontecendo com o Pão de Açúcar e o bondinho no Rio de Janeiro.

Descobrimos isso da pior forma possível. O Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio) — organização sem fins lucrativos — fez uma publicação nas redes sociais sobre a abertura das inscrições para seu programa internacional de pesquisadores, que todo ano traz professores para passar um mês no Brasil, promovendo o intercâmbio acadêmico entre instituições nacionais e estrangeiras.

As inscrições são gratuitas e o Instituto paga parte dos custos dos selecionados. O ITS não lucra com o programa. Ao contrário, investe nele. Em suma, uma atividade sem fins lucrativos, de uma instituição sem fins lucrativos, que faz uma chamada anual para um programa acadêmico que atrai talentos para o país, e em especial para o Rio de Janeiro.

Qual a melhor imagem para isso? Usar um dos símbolos da cidade: o Pão de Açúcar e o bondinho. Usamos o recorte de uma foto retirada de banco de imagens público e gratuito, que licencia as imagens para qualquer finalidade de uso. Veja abaixo a foto que postamos:

Publicação original do ITS Rio anunciando a oitava edição do programa de fellowship. A imagem do bondinho foi ocultada.

Como dá para ver, a foto retrata não só o Morro da Urca, mas também a enseada salpicada de barcos, os bairros da Urca e de Botafogo, o morro do Sumaré, além dos cabos e de um dos bondinhos. Se ampliar bem a foto dá até para ver também o Cristo.

Qual não foi nossa surpresa ao receber uma notificação das empresas que exploram o bondinho do Pão de Açúcar (COMPANHIA CAMINHO AÉREO PÃO DE AÇÚCAR e PÃO DE AÇÚCAR EMPREENDIMENTOS TURÍSTICOS S.A.) demandando a remoção da foto. A notificação foi enviada por advogados das empresas, acusando o Instituto de obter “vantagem comercial indevida”, com o “aproveitamento parasitário e enriquecimento sem causa”, além de praticar ato de “concorrência desleal” e atividade publicitária de “emboscada”.

Postar uma foto do bondinho virou “aproveitamento parasitário” que leva ao “enriquecimento sem causa”. Inacreditável.

Segundo as empresas, “usos não autorizados das imagens acima violam os direitos das NOTIFICANTES e, consequentemente, acarretam, além de prejuízos com usos inadequados, uma associação indevida com a boa fama, inclusive internacional, do Parque Bondinho Pão de Açúcar®”. Que prejuízos seriam esses?

As empresas indicam ainda que são “as únicas e exclusivas detentoras dos direitos de exploração da imagem comercial e representações do Parque Bondinho Pão de Açúcar”. Sendo assim, demandam que o Instituto cesse “todo e qualquer uso, presente e futuro, de imagens ou quaisquer representações do Parque Bondinho Pão de Açúcar®, bem como de qualquer forma de associação não autorizada ao Parque Bondinho Pão de Açúcar®, alterando ou excluindo materiais de divulgação, comunicação ou publicidade de ITS que retratem o sistema teleférico do Parque Bondinho Pão de Açúcar®”.

Além disso, as empresas demandam que o ITS Rio assine um “Termo de Compromisso, de forma a garantir que não farão, de forma não autorizada, quaisquer usos futuros de todo e qualquer ativo de Propriedade Intelectual de titularidade das NOTIFICANTES, incluindo mas não se limitando à imagem comercial do Parque Bondinho Pão de Açúcar®, que direta ou indiretamente sejam relacionados ao Parque Bondinho Pão de Açúcar® e/ou possa causar risco de confusão ou associação indevida com o Parque e/ou com as NOTIFICANTES.”

Notificações como essa são típicas do chamados “copyright trolls”: empresas que enviam centenas, às vezes milhares, de notificações para fazer valer direitos que muitas vezes não possuem, ou cujo exercício pode estar restrito pelas hipóteses de exceções e limitações da lei de direitos autorais. Em outras palavras, empresas que se profissionalizaram na adoção de práticas abusivas, explorando a propriedade intelectual e outros direitos similares para constranger os notificados a fechar acordos.

Esses copyright trolls contam com o fato de que a maioria das pessoas notificadas não possuem formação jurídica e podem se sentir ameaçadas com a afirmação de que estariam cometendo supostos ilícitos.

Tendo em vista a larga experiência do ITS Rio com os temas aventados na presente notificação, já que o instituto desenvolve justamente pesquisas e cursos sobre propriedade intelectual, inclusive em parceria com algumas das mais prestigiosas universidades estrangeiras, optamos por indicar aqui alguns fundamentos que revelam a improcedência dos argumentos e o abuso cometido pelas empresas que exploram o bondinho. Até como forma de auxiliar outras pessoas que estejam sendo constrangidas pelas concessionárias.

O sistema teleférico do Parque Bondinho do Pão de Açúcar é uma estrutura física de inegável importância turística. Contudo, por se tratar de estrutura física utilitária (o bondinho é um meio de transporte), não é passível de proteção, por exemplo, por direitos autorais. E, ainda que fosse protegida, ela estaria claramente sujeita à limitação constante do art. 48 da Lei 9.610/98, que determina que “as obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais”.

As empresas alegaram que a foto violaria as regras para utilização do bondinho, que determinam ser proibido “filmar ou fotografar para fins comerciais sem prévia autorização da empresa.”. A valer esse entendimento para lá de ampliado do que significa fim comercial, nenhuma foto com bondinho poderia existir nas redes sociais sem a bênção das empresas, já que as plataformas digitais se remuneram com tráfego, anúncios e interações vinculados aos conteúdos postados.

O mesmo vale para conteúdos monetizados, como os publicados por influenciadores digitais, com fotos ou vídeos sobre turismo no Rio de Janeiro, incluindo o bondinho do Pão de Açúcar. Todos “pegam carona” na fama da atração. Será que eles receberão uma notificação alegando que estão enriquecendo às custas do bondinho?

Seja qual for o fundamento alegado pelas empresas que exploram o bondinho — direito autoral, direito à imagem ou simples violação contratual — nenhuma delas merece prosperar. Os tribunais nacionais já decidiram diversas vezes sobre casos semelhantes e não reconheceram violação de direitos, mesmo quando uma atração turística é usada em clara peça publicitária ou reproduzida em ingresso de jogo de futebol.

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por exemplo, decidiu que o grupo Assim Saúde pode usar a imagem do Cristo Redentor em suas peças publicitárias, sem pedir autorização para a Mitra Arquiepiscopal, que administra o monumento. Segundo o Tribunal, o Cristo “constitui um dos principais símbolos da Cidade, fazendo parte do acervo cultural, histórico e paisagístico desta. Material publicitário do qual não se entrevê potencialidade para incrementar a atividade empresarial pela só vinculação da imagem da sociedade ao monumento em si, revelando em verdade um apelo ao bairrismo, já que as referências apontam para a Cidade do Rio de Janeiro. Ausência de exploração econômica direta, como a venda de cartões postais retratando unicamente o monumento ou a reprodução deste em escultura de tamanho reduzido, capaz de configurar a lesão ao direito patrimonial.”

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, em decisão relatada pelo Ministro Luis Felipe Salomão, entendeu que a CBF pode estampar uma ilustração de obra situada na Praça das Araras, símbolo de Campo Grande/MS, no ingresso de jogo de futebol realizado na cidade. O tribunal se valeu do artigo 48 da Lei de Direitos Autorais para esclarecer que “a reprodução da fotografia da obra nos ingressos da competição revelou-se, diretamente, vinculada ao escopo de divulgação do patrimônio turístico da cidade, sem qualquer reflexo no interesse do público em participar do evento; (…) [a]demais, a utilização da referida fotografia, inexoravelmente, não significou qualquer incremento ao número de espectadores do jogo.”

Tudo vale também para o nosso caso e para o de todas as outras pessoas que possam estar sendo assediadas por razões similares. Afinal, se os casos acima, que tratam de obras protegidas por direitos autorais, resultaram em decisões que autorizaram o uso dessas obras, imagine quando nenhuma obra protegida por direitos autorais está envolvida!

A escolha da foto do Pão de Açúcar para promover as inscrições do nosso programa de pesquisa internacional decorre de uma marcação geográfica. Afinal, temos o “Rio de Janeiro” orgulhosamente no nosso nome. Somos o Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro. Sendo o Pão de Açúcar um símbolo internacional da cidade, a foto com sua representação gráfica situa, aos interessados, o lugar onde a pesquisa se dará. Sem contar que, desde 2012, o Pão de Açúcar passou a integrar a lista de Patrimônio Cultural Universal da Unesco.

Além disso, o Pão de Açúcar e o bondinho aparecem recorrentemente em obras audiovisuais, fotográficas, ilustrações, desenhos e gravuras, como é mesmo de se esperar de um símbolo tão presente na paisagem urbana do Rio de Janeiro. A lei protege todas essas representações.

Imaginamos o dissabor e a incerteza que esse tipo de notificação provoca em todos aqueles que a recebem. Com a publicação deste texto o ITS Rio espera contribuir com a indicação de fundamentos que revelam o abuso das empresas notificantes. Já estamos tomando as devidas providências para evitar que prosperem práticas abusivas como essa, infelizmente cometida por concessionárias que exploram um marco geográfico símbolo da nossa cidade.

Se você conhece casos semelhantes a esse, entre em contato conosco pelo e-mail imprensa@itsrio.org.

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O Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio) é uma associação fundada em 2013 por professores de diversas instituições acadêmicas com a missão de assegurar que o Brasil e o Sul Global possam responder de maneira criativa às oportunidades fornecidas pela tecnologia na era digital, e que seus potenciais benefícios sejam amplamente compartilhados pela sociedade. Com forte conexão com as mais prestigiadas universidades e centros de pesquisa pelo mundo afora, o ITS Rio realizou eventos acadêmicos pioneiros, como o Artificial Intelligence & Inclusion, sediado no Museu do Amanhã em 2017, além de promover o seu programa anual de intercâmbio para professores e pesquisadores estrangeiros.

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O Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio estuda o impacto e o futuro da tecnologia no Brasil e no mundo. — www.itsrio.org