Humor e liberdade de expressão: vale tudo?

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7 min readJan 5, 2017

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Por Chiara de Teffé*

  • Humorismo não é apenas uma forma de fazer rir.

Muitas vezes, o humor é construído a partir de uma visão crítica do mundo e do comportamento humano. Além de ser marcado pela descontração, o humor vale-se do exagero, da hipérbole, do óbvio e do absurdo para provocar o riso ou, ao menos, um sorriso. Charges, paródias e piadas não podem ser interpretadas literalmente ou consideradas como verdades absolutas. Elas devem gozar de um espaço maior de liberdade para que o indivíduo possa se expressar com maior espontaneidade e, até mesmo, acidez.

No principal caso julgado sobre os limites do humor, o Supremo Tribunal Federal optou por permitir, a princípio, a manifestação dos mais variados discursos humorísticos, o que reflete a tendência da Corte de conferir uma tutela privilegiada para as liberdades de expressão e de manifestação.

Em 2010, no julgamento dessa Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.451, que trata da suspensão de dispositivos da Lei Eleitoral sobre o humor, o STF entendeu que programas humorísticos, charges e o modo caricatural de pôr em circulação ideias, opiniões, frases e quadros espirituosos integrariam as atividades de imprensa, sinônimo perfeito de “informação jornalística”, devendo gozar da plenitude de liberdade que é assegurada pela Constituição à imprensa (art. 220, §1º).

Mas não se assuste.

O exercício concreto dessa liberdade não é ilimitado. Aquele que ofender terceiros e causar dano poderá responder penal e civilmente por abusos que vier a cometer. Além de pedir em juízo indenizações, o indivíduo que se sentir lesado poderá também pleitear direito de resposta ou uma retratação pública.

  • Até que ponto o humor pode ser protegido pela liberdade de expressão?

Ainda que a Constituição proteja amplamente a manifestação do pensamento, a criação e a expressão, não parece razoável que, sob o véu da liberdade de expressão, seja possível propagar discursos que, de alguma forma, incentivem o ódio e a violência contra uma pessoa, grupo ou instituição. O direito fundamental à liberdade de expressão deve ser protegido na exata medida que outros direitos fundamentais, como o direito de ser diferente (oriundo do direito à igualdade) e os direitos da personalidade, como a honra, a imagem e a intimidade. No caso concreto, deve o intérprete ponderar os direitos em conflito e, de forma fundamentada, determinar qual grupo de interesses deve prevalecer.

A liberdade de expressão é um princípio fundamental da democracia, mas precisa estar harmonizada com outros princípios da mesma grandeza. Não se pode, evidentemente, limitar de forma indevida a liberdade de expressão e a liberdade de fazer humor, sob pena de se silenciar discursos relevantes, como críticas sociais e políticas, mas também é inadmissível se admitir a expressão de discursos que incentivem o ódio e a discriminação de minorias.

  • Perco o amigo, mas não perco a piada: vale a pena fazer a piada a qualquer custo?

Nos últimos anos, alguns episódios colocaram a questão do humor e da liberdade de expressão novamente em evidência. Em 7 de janeiro de 2015, a redação do jornal satírico francês Charlie Hebdo sofreu um atentado terrorista que resultou na morte de 12 pessoas, além de feridos. O atentado seria uma resposta às caricaturas e sátiras ao profeta Maomé e líderes islâmicos feitas pelo jornal. A frase “Je suis Charlie” foi repetida por milhares de pessoas, em diversos países, como forma de solidariedade às vítimas e para lembrar a importância de se proteger a liberdade de expressão. Seriam as mortes um atentado à liberdade de expressão? O humor produzido pelos cartunistas teria ido longe demais, ao retratar figuras e aspectos de religiões conservadoras, como o Islamismo?

Não há como negar que a Internet vem se mostrando um território fértil para o discurso humorístico, por permitir tanto rápida disseminação de conteúdo quanto a sua visualização por um número antes inimaginável de pessoas. Os melhores exemplos disso são os chamados memes, comumente publicados em mídias sociais, e os vídeos de humor postados em milhares de canais na rede.

O grupo de humor “Porta dos Fundos” postou, em 23 de dezembro de 2013, um vídeo intitulado “Especial de Natal” com alguns esquetes que satirizavam o nascimento e a crucificação de Jesus. Se, de um lado, diversos grupos cristãos criticaram o vídeo e afirmaram que se sentiram ofendidos, de outro, a polêmica gerada aumentou a notoriedade do grupo e elevou expressivamente o número de visualizações do mencionado vídeo (até 27 de dezembro de 2016, o vídeo tinha 7.229.470 visualizações). As duas denúncias propostas em face do grupo “Porta dos fundos”, em razão do conteúdo exibido no vídeo, acabaram sendo arquivadas em 2015. Assim como o jornal Charlie Hebdo, o “Porta dos fundos” continuou produzindo conteúdo crítico: em 24 de dezembro de 2014, lançou o especial de Natal “O velho testamento” e, no ano seguinte, o especial “Jesus Cristo”.

Em 2011, diante do cancelamento da Estação de Metrô, em Higienópolis, e da reação contrária dos moradores do tradicional bairro à linha metroviária, o comediante Danilo Gentili postou em sua conta no Twitter a seguinte frase: “entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que eles chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz”. A referência ao campo de concentração nazista ocorreu em razão do bairro concentrar descendentes de judeus. Diante da repercussão do caso, Gentili apagou a postagem e, posteriormente, desculpou-se.

  • Há limites para o humor?

A resposta para a questão acima parece depender tanto das concepções subjetivas do intérprete sobre o que é ou não ofensivo ou de mau gosto quanto do valor que ele atribui para a liberdade de expressão. Seria possível classificar uma piada como inteligente, rude ou chula? Cabe ao julgador decidir se a piada valeu ou se o tipo humor praticado é de bom ou de mau gosto?

Pelo texto constitucional, parece razoável que o julgador analise com maior rigor o tratamento dado para questões relacionadas à raça, gênero, sexualidade e religião, justamente por serem temas bastante delicados e que gozam de ampla proteção no ordenamento jurídico.

Nos dias atuais, em determinados casos, é possível notar tanto alguns excessos quanto alguma suscetibilidade exagerada. Uma crítica ou sátira mais cáustica pode ser capaz de provocar uma discussão sem fim em mídias sociais e gerar repercussões nos mais diversos meios, o que nem sempre é negativo, mas deve se dar de forma razoável e respeitosa. Em certos momentos, parece necessário colocar alguns limites ao discurso humorístico. Mas de onde viriam tais limites? Respondo: da própria Constituição Federal, especialmente de seus artigos 3º e 5º.

É possível limitar o humor quando, por exemplo, ele incentivar preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; for ofensivo a uma determinada religião ou crença; violar de forma injustificada e desproporcional a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem de uma pessoa; e incentivar discriminações ou discursos racistas. Recorda-se, aqui, o caso de uma mãe norte-americana que luta para ver removidos memes que usam fotos de seu filho de 3 anos, Grayson Smith, que sofre com diversas doenças graves, como epilepsia, apneia, um defeito no coração e protuberâncias do tecido cerebral em várias partes do crânio. Não é necessário ir muito longe para achar memes que gozam com o aspecto de uma criança. A filha de um famoso empresário, lamentavelmente, já teve diversas imagens suas utilizadas dessa forma.

Além de observar a proteção constitucional oferecida a determinados bens, é recomendável que se analise também determinadas questões, como a conduta da vítima, se evitou a brincadeira ou se provocou a outra parte, mesmo já conhecendo a forma de humor praticada por ela; a forma como o humor é comumente expresso naquele programa ou publicação; e o contexto da piada, uma vez que o caráter cômico do programa ou da publicação pode vir a atenuar a gravidade daquilo que é exposto.

Quando era apresentador do programa CQC, em 2011, o humorista Rafinha Bastos, ao ouvir o nome da cantora Wanessa Camargo, disse: “comeria ela e o bebê”. Na época, a cantora estava grávida. Ela, o nascituro e o marido entraram com uma ação indenizatória em face do humorista no Tribunal de Justiça de São Paulo e obtiveram ganho de causa. No Superior Tribunal de Justiça, Rafinha Bastos questionou a obrigação de indenizar, já que Wanessa afirmou que não buscava compensação moral, mas apenas a “punição do ofensor”. Caso não fosse aceito esse pleito, o humorista pediu a redução do valor fixado. Todavia, o relator do recurso, o ministro Marco Buzzi, considerou o comentário “reprovável, agressivo e grosseiro, sendo efetivamente causador de abalo moral” e negou os pedidos do humorista. Eles serão indenizados em R$ 150.000,00. No caso narrado, a piada ocorreu dentro de um contexto específico? A piada estava de acordo com o humor expresso no programa televisivo? Wanessa sabia e consentiu mesmo que tacitamente com a brincadeira? Para o Judiciário, as três perguntas receberam respostas negativas.

A 2ª parte do texto será publicada até o final de janeiro e responderá as seguintes questões:

  • Quando o humor agressivo deixa de ser humor e se torna uma ofensa que gera um dano indenizável?
  • Quais instrumentos jurídicos podem ser utilizados para proteger a pessoa nos casos em que a manifestação de pensamento for considerada abusiva?
  • Quem responde pelos excessos?

Quer mergulhar no assunto? Assista nossa Varanda #10 abaixo, com os humoristas Hélio de La Peña, do Casseta & Planeta, e Luis Lobianco, do Porta dos Fundos.

*Chiara de Teffé é doutoranda em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Direito Civil pela Uerj e pesquisadora do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio.

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