Bolsonaro e a disputa pela moderação de conteúdo em redes sociais

João Victor Archegas*

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A notícia em três pontos:

  • No dia 15 de abril de 2021, o Secretário Especial da Cultura do Governo Bolsonaro, o Sr. Mario Frias, enviou um ofício ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Naquela ocasião, Frias informou que a Secretaria Nacional de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual, vinculada ao Ministério do Turismo, havia recebido reclamações de usuários de redes sociais que “alegaram ter sido realizada a remoção de conteúdo veiculado por seus canais e páginas de plataformas e até mesmo cancelamento de contas sem observância mínima de seus direitos.” Nestes termos, o ofício afirmava que os termos de uso de plataformas como Facebook e Twitter violam o direito constitucional à liberdade de expressão, o Marco Civil da Internet (MCI) e a Lei de Direitos Autorais (LDA).
  • Já no dia 5 de maio de 2021, o Presidente Jair Bolsonaro, por ocasião da cerimônia de abertura da Semana Nacional das Comunicações, afirmou que “estamos na iminência de um decreto para regulamentar o Marco Civil da Internet, estabelecendo punições para quem não o respeitar.” Na sequência, no dia 13 de maio de 2021, o Ministro do Turismo, o Sr. Gilson Machado Guimarães Neto, circulou por meio de ofício uma minuta do decreto que o Presidente havia mencionado anteriormente. O novo ato tem como objetivo atualizar o Decreto n.º 8.771 de 2016 que, por sua vez, regulamenta o Marco Civil da Internet. O resultado seria proibir, sob pena de sanções administrativas, que plataformas digitais moderem conteúdo fora das hipóteses previstas de forma exaustiva no novo decreto.
  • Conforme justificativa do Ministro do Turismo, “a proposta explicita que, em geral, não é possível, sem ordem judicial, a exclusão, o cancelamento ou a suspensão dos serviços e as funcionalidades das contas mantidas pelo usuário, exceto em situações pontuais e expressamente elencadas.” O texto do decreto, portanto, inverte a lógica da moderação em redes sociais: as plataformas perderiam a capacidade de moderar conteúdo segundo seus termos de uso e passariam a atual somente em situações pré-definidas pelo decreto. Ademais, o texto se ancora numa interpretação equivocada do MCI e tem o condão de aumentar o volume de desinformação (e até mesmo deepfakes) em plataformas digitais.

Por que importa?

O possível decreto de Bolsonaro faz parte de um movimento de techlash que enxerga na moderação de conteúdo por redes sociais um ato de censura. Nos Estados Unidos, esse movimento tem como alvo a Section 230 do Communications Decency Act, que confere imunidade às plataformas digitais em relação ao conteúdo publicado e compartilhado por terceiros. Veja-se, por exemplo, o Ending Support for Internet Censorship Act de autoria do Senador Republicano Josh Hawley. Se o projeto for aprovado pelo Congresso dos EUA, a imunidade da Section 230 seria condicionada à apresentação de evidências “claras e convincentes” de que as plataformas moderam conteúdo de uma forma “politicamente neutra”.

Esse debate parte do pressuposto de que empresas como Facebook e Twitter são controladas por “liberais e progressistas” do Vale do Silício que querem suprimir a opinião de “conservadores” na Internet. Os dados, entretanto, apontam para um cenário bem diferente: a direita política, conforme reportagem do POLITICO, tem uma presença dominante nas redes sociais e produz conteúdos mais engajantes. Nada obstante, esse discurso ganhou força após o banimento de Donald J. Trump de diversas plataformas digitais no início de 2021, quando um grupo de apoiadores do ex-presidente invadiu o Capitólio em Washington, DC, e causou a morte de cinco pessoas.

O banimento de Trump teve reflexos também para o debate nacional. No início de fevereiro, a deputada governista Carol de Toni apresentou o PL n.º 246 de 2021 que dispõe sobre a responsabilidade civil de plataformas e determina que “o provedor de aplicações de internet que censurar ou banir opinião ou perfil de usuário, ou rotular o conteúdo de opinião de usuário, responderá pelos danos causados ao próprio usuário ou, solidariamente com este, a terceiros.” Em sua justificativa, a deputada cita o caso de Trump como um exemplo que “reforça a emergência de uma resposta legislativa a esse tipo de atentado contra a liberdade de expressão.”

Vale lembrar, entretanto, que esse tipo de “importação” de regras internacionais é problemático. Como explica Carlos Affonso Souza:

“O artigo 19 do Marco Civil da Internet não é a Section 230 do Communications Decency Act americano, que está sob ataque do Presidente Trump. A imunidade que existe aqui para provedores é sobre o conteúdo postado por terceiros (geralmente seus usuários), mas não sobre a sua remoção e atividades das empresas na moderação de conteúdo. De certa forma, temos a primeira parte da legislação americana, mas não a segunda (conhecida por lá como “bloqueio do bom samaritano”). A imunidade no Brasil é para responsabilidade por atos de terceiros e não por atos próprios dos provedores. O que se quer fazer nos EUA já é uma realidade no Brasil, com usuários processando e ganhando ações quando as plataformas agem e removem abusivamente conteúdos.”

Por sua vez, o decreto aventado por Bolsonaro vai além e enumera as circunstâncias nas quais as plataformas digitais podem moderar conteúdo. Em primeiro lugar, a minuta estipula que as plataformas só poderão excluir ou suspender contas ou perfis de usuários em três hipóteses: inadimplência do usuário, contas que simulam a identidade de terceiros ou contas automatizadas (bots). Em segundo lugar, a minuta estipula que as plataformas só poderão restringir ou excluir conteúdos que (i) violem o ECA, (ii) a requerimento do próprio usuário, (iii) a requerimento de terceiro em caso de violação da imagem, privacidade ou direito autoral, ou então (iv) em caso de alguma das “ilegalidades” listadas pelo decreto, como incitação de atos de violência e apoio a organizações terroristas.

Em caso de descumprimento por parte das plataformas digitais, a Secretaria Nacional de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual poderá aplicar sanções que vão desde uma simples advertência até a proibição do exercício de atividades comerciais no Brasil. A lógica por trás do decreto é que a moderação fora das hipóteses listadas representa uma violação dos direitos autorais dos usuários de aplicações de Internet. Entretanto, a minuta parte de uma interpretação equivocada do Marco Civil da Internet e, ao invés de simplesmente regulamentá-lo, inova em matéria legal e cria direitos e obrigações para além do disposto pela legislação nacional.

Dois pontos merecem destaque. Em primeiro lugar, o MCI prestigia a liberdade das plataformas de estabelecerem suas próprias regras de moderação de conteúdo dentro de um cenário de autorregulação. E é justamente para proteger a liberdade de expressão que o Artigo 19 da lei permite a responsabilização das plataformas apenas em caso de descumprimento de ordem judicial prévia e específica. Ademais, como vimos, o MCI não incorpora a lógica da Section 230 do “bom samaritano”. O decreto proposto pelo Governo Federal inverte essa lógica e, ao assim proceder, coloca a própria liberdade de expressão em risco ao interferir na esfera de autorregulação das plataformas para estipular parâmetros de moderação de conteúdo que sequer são suficientemente justificados.

Em segundo lugar, se for assinado pelo Presidente, o decreto fará com que diversos conteúdos problemáticos, que hoje são limitados pelas plataformas, permaneçam online. Por exemplo, campanhas de desinformação que alegam a ineficácia das vacinas deverão permanecer disponíveis sem qualquer restrição; não há na minuta hipóteses que possam justificar a restrição desse tipo de conteúdo. Até mesmo as infames deepfakes deverão permanecer intocadas pelas plataformas, sob pena de sanção. Talvez Tom Cruise acabe sendo um dos principais atingidos.

Os exemplos não param por aí, mas já nos ajudam a dimensionar os problemas que seriam causados por este decreto para o (já turbulento) ecossistema das comunicações em plataformas digitais. Conteúdos que causam danos mas que não estão albergados pelas hipóteses elencadas no decreto — como desinformação e deepfakes — permaneceriam disponíveis nas redes sociais até que uma ordem judicial determine sua remoção. Até que isso aconteça, entretanto, os danos já seriam imensuráveis, ainda mais considerando a dinamicidade do ambiente digital.

O que as pessoas estão dizendo?

A base de Bolsonaro recebeu a notícia do possível decreto com euforia. O deputado estadual de MG Bruno Engler disse que a medida é primordial para as eleições de 2022.

Tweet do deputado estadual Bruno Engler

Atila Iamarino, crítico do governo Bolsonaro e de sua estratégia de combate à pandemia, disse que “o governo brasileiro depende de notícias falsas” e, por isso, quer obrigar plataformas digitais a serem cúmplices por decreto. Em outras palavras, Atila argumenta que o decreto é uma forma de proteger a rede de desinformação de Bolsonaro.

Tweet do Atila Iamarino

Já Carlos Affonso Souza, diretor do ITS, deu destaque ao fato de que o decreto inverte a lógica hoje vigente para algo como “nada pode ser removido, aqui está o que pode.” Ademais, também pontuou que o decreto se ancora numa “visão absolutista do direito autoral”.

Tweet do Carlos Affonso

Daqui em diante:

Segundo a análise de especialistas ouvidos pela Folha de S.Paulo, o decreto é ilegal e inconstitucional. Assim, já existem argumentos contundentes para desafiar a validade do ato perante o Poder Judiciário caso o Presidente Bolsonaro de fato venha a assiná-lo nos próximos dias. Nesse contexto, o destino do decreto já é certo: será alvo de uma longa batalha judicial para averiguar sua compatibilidade com o Marco Civil da Internet e a própria Constituição Federal.

Caso o governo federal obtenha sucesso, o decreto poderá ter impactos significativos para o debate público ao longo das eleições presidenciais de 2022. Um dos pontos de tensão pode ser um espelho do que ocorreu nos Estados Unidos, abrindo espaço para uma desconfiança dos eleitores quanto a lisura das urnas eletrônicas.Isso certamente se tornará um ponto focal da sua campanha eleitoral e, caso o referido decreto ainda esteja valendo, as plataformas não poderão limitar campanhas de desinformação que buscam deslegitimar o nosso sistema eleitoral, colocando em xeque o resultado das eleições.

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*Mestre em Direito (master of laws) pela Harvard Law School, onde recebeu a Gammon Fellowship de mérito acadêmico e uma bolsa associada ao prêmio. Em 2018, graduou-se em Direito pela Universidade Federal do Paraná, onde foi bolsista de iniciação científica do CNPq e pesquisador associado ao NINC (Núcleo de Investigações Constitucionais). Foi aluno do Columbia Summer Program de 2018 na Universidade de Leiden. Tem experiência profissional como pesquisador em temas de direito constitucional comparado e como advogado na área de direito público. É autor de diversos artigos no JOTA e no Verfassungsblog. Tem interesse por governança digital, moderação de conteúdo, constitucionalismo digital e desinformação em redes sociais. No ITS é pesquisador na área de Direito e Tecnologia.

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