Nota Técnica sobre os Projetos de Lei do Senado n° 471 e 533

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5 min readDec 18, 2018

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Autorias: PLS 471/18 - Senador Humberto Costa (PT/PE) | PLS 533/18 Senador Ataídes Oliveira (PSDB/TO)

Os dois PLS contém a mesma redação.

Ementas: Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, a Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, e a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, para dispor sobre a definição das infrações penal, eleitoral e civil de criar ou divulgar notícia falsa, e cominar as respectivas penas.

O QUE DIZEM OS PROJETOS :: Os Projetos de Lei do Senado nº 471 e 533, de iniciativa do Senador Humberto Costa (PT) e do Senador Ataídes Oliveira (PSDB), respectivamente, visam a alterar o Código Penal, o Código Eleitoral e o Marco Civil da Internet, tendo por objetivo combater a disseminação de notícias falsas, principalmente na Internet. Eles inserem uma definição de notícia falsa nos três diplomas legais e criam regimes específicos de sancionamento na esfera penal, eleitoral e civil.

O Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro reconhece a importância de se debater meios para combater a disseminação de notícias falsas e a desinformação, tendo recentemente produzido pesquisas e publicações sobre o tema. Todavia, as soluções adotadas pela atual redação do PLS nº 471 e 533 parecem não apenas não resolver o problema das notícias falsas, como também criam sensíveis restrições à liberdade de expressão na rede. Esse e outros pontos são destacados abaixo:

  1. Definição de “notícia falsa” :: É preciso refletir com cautela sobre a inserção do termo “notícias falsas” na legislação brasileira. O conceito vem sendo criticado por sua inexatidão e captura por alguns segmentos do debate político. O Conselho da Europa, em relatório recente sobre o tema, evitou explicitamente a referência, preferindo utilizar a noção de “desordem informacional”. Outros autores utilizam simplesmente o termo desinformação. Como se sabe, o legislador deve apenas excepcionalmente inserir definições no texto da lei, reservando essas adições para o caso de conceitos largamente estabelecidos na prática jurídica. Não é o que acontece com o termo “notícias falsas”, que acabará gerando dúvidas significativas sobre a sua interpretação e aplicação. Esse tipo de imprecisão pode inviabilizar a própria aplicação da lei aqui projetada.
  2. O problema da desinformação vai além da notícia falsa :: Um ponto que revela como o recurso ao termo “notícias falsas” pode ser prejudicial é a percepção de que muitos conteúdos disseminados durante o período eleitoral que se provaram falsos não foram veiculados como “notícia”, mas sim como informações vazadas por quem supostamente teve acesso a dados sigilosos, gravações de áudios forjadas ou mesmo vídeos adulterados. Ao usar o termo, o PLS parece exigir que a informação venha caracterizada como “notícia”.
  3. Tipo penal indefinido e insegurança jurídica :: A tipificação penal sugerida fala em “distorcer”, “alterar” e “corromper” gravemente a verdade sobre algum tema de interesse público relevante. O tipo penal deve apontar da forma mais específica possível a conduta a ser sancionada. No caso, as três condutas parecem se confundir. Qual a diferença entre distorcer e alterar? A redação ainda transfere parte importante da sua definição para a avaliação do juiz, que precisará determinar se as condutas afetam a verdade “gravemente” e se o assunto em tela é de “interesse público relevante”.
  4. Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional (CCS) recomendou a não criação de novos tipos penais :: Em seu parecer nº 01/2018, o CCS assim se posicionou: “A desinformação é um fenômeno mundial que vai além das chamadas “fake news”, merecendo amplo debate e medidas para seu combate. A resposta para o problema, no entanto, não passa pela tipificação de novos crimes, notadamente o da divulgação de notícias fraudulentas, mas sim por um conjunto de medidas para garantir mais informação e educação midiática ao conjunto da sociedade.”
  5. O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/14) já possui regime de remoção e responsabilização por conteúdos postados na rede. A solução proposta no PLS estimula a censura prévia :: O Marco Civil da Internet (MCI) é reconhecido pelo próprio Tim Berners-Lee, o “Pai da Web”, como uma legislação que protege a liberdade de expressão da rede. O PLS não apenas altera esse regime como também suprime do artigo 19 do MCI a relevante menção de que a disciplina da responsabilização de provedores se dá “com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura.” Para resguardar os valores constitucionais de liberdade de expressão e acesso à informação, o MCI responsabiliza o provedor de aplicações que descumpre decisão judicial ordenando a retirada do material ofensivo. Esse regime evita assim a censura privada por parte das plataformas que, ao receber mera notificação de que conteúdo seria falso, optariam por removê-lo para não correrem riscos de serem responsabilizadas. A solução adotada no PLS cria justamente esse ambiente de estímulo ao monitoramento e à remoção rápida de conteúdos sem passar pelo crivo do Poder Judiciário. Assim, a proposta suprime importantes garantias de matriz constitucional presentes no MCI.
  6. Relatores especiais da ONU, da OEA e de outras entidades condenam o regime de responsabilização de provedores como previsto no PLS :: A Declaração Conjunta sobre Liberdade de Expressão, “Notícias Falsas”, Desinformação e Propaganda, assinada por relatores especiais da ONU, OEA, OSCE e CADHP afirma que: “Os intermediários não devem ser responsabilizados, sob nenhuma circunstância, por conteúdos de terceiros relacionados a esses serviços, a menos que especificamente interfiram nesses conteúdos ou se recusem a cumprir uma ordem emitida de acordo com as garantias do devido processo por um órgão de supervisão independente, imparcial e autorizado (como o Poder Judiciário) que ordene a remoção de tal conteúdo, e que tenham a capacidade técnica suficiente para fazê-lo.”
  7. A experiência legislativa internacional no combate às notícias falsas é incipiente e vem recebendo importantes críticas :: Em sua justificação, o PLS menciona a experiência legislativa internacional, reconhecendo que a mesma é “ainda pequena” e não passando de “tentativas de aproximação com uma norma jurídica equilibrada.” No caso específico da legislação alemã, vale destacar que ela não criminaliza o usuário, mas prevê multas às plataformas. Ademais, a legislação vem sofrendo importantes críticas no que tange à censura de conteúdo e poder de decisão conferido às plataformas que, na tentativa de obedecerem à lei, acabam excluindo materiais em excesso e de forma abusiva.

O ITS Rio entende, assim, que os PLS nº 471/18 e 533/18, ao procurar combater a disseminação de notícias falsas, acaba criando inovações legislativas que ameaçam importantes garantias constitucionais e infraconstitucionais, gerando insegurança jurídica e modificando o regime de responsabilização de provedores consolidado no País com apoio em experiência internacional incipiente e sujeita a importantes críticas. O combate contra a desinformação deve ocorrer sempre com mais informação, não com menos.

O ITS Rio agradece pela oportunidade de se manifestar sobre a proposta legislativa e se coloca à disposição para colaborar no debate sobre educação digital e sobre formas de melhor enfrentar o fenômeno da desinformação na sociedade brasileira.

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