Novas Lições do “Homem Vitruviano”

ITS Rio
ITS FEED
Published in
6 min readApr 25, 2024

--

É preciso lembrar, no dia Internacional da Propriedade Intelectual, que sua proteção é de mão dupla e limites precisam ser respeitados

*Sérgio Branco e **Pedro Gueiros

O Globo e a Folha de São Paulo publicaram recentemente matéria sobre o “Homem Vitruviano”, famoso desenho de Leonardo da Vinci, realizado em 1490, e que você pode ver abaixo:

O objetivo dos textos não era enaltecer as qualidades insuspeitas da obra renascentista, mas explicar por que, cinco séculos após a morte de seu autor, a ilustração se encontra no meio de uma batalha de direitos autorais.

Em síntese, uma empresa alemã chamada Ravensburger tem vendido há mais de uma década um quebra-cabeça de 1.000 peças com a imagem do desenho. Contudo, o governo italiano e a Gallerie della’Accademia de Veneza, onde pode ser visto o “Homem Vitruviano”, dentre outras obras de Da Vinci, invocam o Código de Patrimônio Cultural e Paisagístico da Itália datado de 2004, para exigir que a empresa alemã pague um valor pelo uso da imagem no brinquedo, reproduzido abaixo:

De acordo com o referido Código italiano, é possível que instituições culturais do país exijam taxas de concessão e pagamentos para que se tenha a exploração comercial de bens culturais nacionais. Segundo matéria publicada no ano passado:

A ordem do tribunal de Veneza se baseia no chamado “Código dos Bens Culturais e da Paisagem”, um decreto legislativo de 2004 que estabelece (nos artigos de 107 a 109) que obras de arte só podem ser reproduzidas com a autorização dos órgãos públicos territoriais que as custodiam e respeitando as leis de direitos autorais: na prática, estabelece que o órgão público tem direito a uma compensação como se fosse o autor da obra (a porcentagem a ser paga é decidida caso a caso). A Ravensburger deverá necessariamente respeitar a decisão do tribunal e só poderá contestá-la no que diz respeito à porcentagem exigida pelo museu pelos direitos (ou seja, os 10 por cento).

Contudo, é fundamental notar que a norma em que se baseia a decisão judicial é um Decreto italiano, válido no território italiano. Por isso, para se fazer valer qualquer pretensão transfronteiriça de direitos de PI, a análise territorial é um fator indispensável. Em outras palavras: se tenho um problema com uma empresa alemã, que lei deve prevalecer?

A resposta está na Convenção de Berna, tratado internacional mais importante em matéria de direitos autorais. Seu art. 5(2) determina que: “2) O gozo e o exercício desses direitos [autorais] não estão subordinados a qualquer formalidade; esse gozo e esse exercício independentes da existência da proteção no país de origem das obras. Por conseguinte, afora as estipulações da presente Convenção, a extensão da proteção e os meios processuais garantidos ao autor para salvaguardar os seus direitos regulam-se exclusivamente pela legislação do País onde a proteção é reclamada (grifo nosso).

Ou seja: se o governo italiano quer regular o uso de o “Homem Vitruviano” fora do território italiano, precisa se pautar pela lei de cada um desses outros territórios.

Sabe-se que a própria Convenção de Berna estabelece que obras intelectuais serão protegidas por direitos autorais pela vida do autor e, pelo menos, mais 50 anos. No mundo todo, nenhum país concede prazo maior do que cem anos, sendo o México aquele que conta com o prazo mais longo. Logo, o “Homem Vitruviano” está em domínio público em todo o mundo, o que consequentemente traz a possibilidade de seu uso irrestrito. A menos que a lei de determinado país imponha o que se convencionou chamar “domínio público remunerado”.

No Brasil, por exemplo, sob a antiga Lei de Direitos Autorais (Lei nº 5.988/1973), a utilização de obras pertencentes ao domínio público dependia de autorização do Conselho Nacional de Direito Autoral, na forma do art. 93. Seu parágrafo único previa ainda que, caso houvesse exploração comercial, a importância a ser recolhida pelo Conselho seria correspondente a 50% da que caberia ao autor da obra, salvo para fins didáticos, em que essa porcentagem se reduziria para 10%.

Essa previsão durou muito tempo. Foi revogada pela Lei nº 7.123 de 1983 e a Lei brasileira atual não trata do tema.

Por conta da territorialidade em matéria de Propriedade Intelectual, conforme claramente dispõe a Convenção de Berna, é incoerente que o governo italiano queira impor os efeitos de uma lei nacional a outros territórios, onde outras leis estão em vigor. O máximo que poderia ser demandado, no caso do quebra-cabeça, é que houvesse pagamento pela venda do brinquedo em território italiano.

É preciso lembrar, a todo tempo, que a Propriedade Intelectual não é um instituto de proteção exclusiva de autores e de titulares de direitos. Todo o sistema de Propriedade Intelectual é concebido de modo a garantir a tutela de direitos sociais, e não apenas no campo dos direitos autorais, onde contamos com as limitações (arts. 45 a 48 da Lei nº 9.610/98) e o domínio público, como também na propriedade industrial. A Lei nº 9.279/96 contém dispositivos que limitam os direitos sobre marcas (art. 132) e sobre as patentes (art. 43), além de estas estarem sujeitas à concessão de licença compulsória e ao ingresso em domínio público.

Por isso, no dia em que se comemora internacionalmente a Propriedade Intelectual, precisamos estar atentos ao fato de que ela não garante apenas a proteção de criadores e inventores por seus trabalhos, mas também assegura que a sociedade seja beneficiada pelos processos criativos e de inovação, garantindo seu desenvolvimento social, econômico e cultural.

Embora a primeira perspectiva seja aquela que frequentemente é lembrada, estando no cerne dos principais debates em torno dos direitos de Propriedade Intelectual, é a segunda, por meio de limitações, licenças compulsórias e domínio público, que reforça e confere o exercício de muitos outros direitos, como a liberdade de expressão, de pesquisa, o acesso à educação, dentre outros.

A tentativa de estender ilegalmente os limites da Propriedade Intelectual, como o governo italiano tenta fazer no caso do “Homem Vitruviano”, demonstra que, nesse caso, temos que lembrar que quem pode sair perdendo é a sociedade. Este tipo de ação não só distorce um aspecto essencial da Propriedade Intelectual, mas também impede o livre acesso ao conhecimento e à cultura, elementos fundamentais para o enriquecimento e o desenvolvimento social.

  • Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Professor convidado do doutorado em Inovação, Ciência, Tecnologia e Direito da Universidade de Montréal. Professor de Direito Civil e de Propriedade Intelectual do Ibmec. Professor de Direito Civil e de Propriedade Intelectual da pós-graduação da FGV Direito Rio. Autor dos livros “Memória e Esquecimento na Internet”, “Direitos Autorais na Internet e o Uso de Obras Alheias”, “O Domínio Público no Direito Autoral Brasileiro — Uma Obra em Domínio Público” e “O que é Creative Commons — Novos Modelos de Direito Autoral em um Mundo Mais Criativo”. Especialista em propriedade intelectual pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro — PUC-Rio. Pós-graduado em Cinema Documentário pela FGV. Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Advogado. Cofundador e diretor do ITS.

**Mestre em Direito Civil pela PUC-Rio. Ex-bolsista da Fundação Konrad Adenauer. Pesquisador em Direito e Tecnologia do ITS Rio. Advogado Orientador do Núcleo de Prática Jurídica do Ibmec-RJ. Integrante do Núcleo Legalite da PUC-Rio.

--

--

O Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio estuda o impacto e o futuro da tecnologia no Brasil e no mundo. — www.itsrio.org