O Mickey Mouse entrou em domínio público nos Estados Unidos. E no Brasil?

Sérgio Branco

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Todo mundo está falando nisso e não é para menos. A entrada em domínio público de um desenho de 1928 gerou texto do New York Times, do Le Figaro, da Variety, do Globo e da Folha de São Paulo. Ronaldo Lemos dedicou sua aguardada coluna anual sobre domínio público ao tema, assim como o assunto foi objeto de análise do ótimo perfil @beladastretas no Instagram. Ou seja: será que ainda tem o que ser dito sobre o ingresso do Mickey Mouse em domínio público? Acho que sim e explico o porquê.

Como as leis nacionais são muito distintas no que diz respeito aos prazos de proteção das obras, vale a pena ressaltar que o ingresso em domínio público, em 01 de janeiro deste ano, do desenho animado de 1928 diz respeito às leis dos Estados Unidos. E daí a pergunta: e no resto do mundo?

Para entender a origem do problema

Ao longo do século XX, os Estados Unidos foram um dos países que mais ampliaram o prazo de proteção a obras criativas, gerando um emaranhado de regras envolvendo critérios como: quando a obra foi criada, quando foi publicada, se houve ou não registro, quem era seu autor etc.

De acordo com o Escritório de Direitos Autorais dos Estados Unidos, “o prazo de direitos autorais para uma obra específica depende de vários fatores, incluindo se ela foi publicada e, em caso afirmativo, a data da primeira publicação. Como regra geral, para obras criadas após 1º de janeiro de 1978, a proteção dos direitos autorais dura toda a vida do autor, mais 70 anos adicionais. Para uma obra anônima, uma obra sob pseudônimo ou uma obra feita sob encomenda, os direitos autorais duram por um período de 95 anos a partir do ano da sua primeira publicação ou um período de 120 anos a partir do ano da sua criação, prevalecendo o que expirar primeiro. Para obras publicadas pela primeira vez antes de 1978, o prazo varia dependendo de vários fatores.”

Neste gráfico, dá para ter ideia do problema:

A estreia do Mickey no cinema foi em 1928, no curta metragem de animação chamado Steamboat Willie, que você pode ver no Youtube, no próprio canal da Walt Disney. O Mickey que aparece no filme é este aqui:

Até o advento da lei de 1998, Steamboat Willie seria protegido por 75 anos contados de sua publicação. Tendo sido publicado em 1928, o prazo expiraria em 2003. Antes que este fosse atingido, o Congresso estadunidense alterou a lei, acrescentando a ela 20 anos ao prazo então existente. Mas essa decisão não veio sem fortes críticas.

É bom lembrar que quando a lei foi modificada em 1998, e mesmo que tenha se celebrizado (pejorativamente) como Lei Mickey Mouse, é óbvio que não podia proteger por tempo suplementar apenas as criações da Disney. Ela se aplicava a todo mundo. E como o prazo de proteção foi estendido em 20 anos, durante duas décadas o que era para entrar em domínio público nos Estados Unidos se manteve protegido.

É discutível que obras intelectuais conservem valor econômico por tanto tempo. O Mickey, claro, é um exemplo de obra cuja proteção se faz patrimonialmente relevante. Contudo, essa não é situação da grande maioria das obras. O aumento de um prazo já longo (75 anos) para outro ainda mais longo (95) tem como principal alvo a circulação livre de obras intelectuais, sem contar com a deterioração dos suportes físicos onde elas eventualmente se encontrem, gerando seu esquecimento e apagamento histórico.

Portanto, o que entrou em domínio público nos Estados Unidos em 01 de janeiro de 2024 foi o curta-metragem Steamboat Willie e, consequentemente, a representação do Mickey Mouse nesse desenho. Agora, o curta de animação pode ser usado por terceiros com ou sem fins comerciais, para criar obras derivadas. Versões posteriores do Mickey Mouse permanecem protegidas e a Disney aparentemente registrou o Mickey do Steamboat Willie como marca. Contudo, é necessário lembrar: tudo isso se aplica aos Estados Unidos e apenas aos Estados Unidos.

Mas e no resto do mundo?

Em uma resposta bem simples: depende da lei de cada país. Sendo específico quanto ao Brasil: o Steamboat Willie já está em domínio público aqui há muito tempo. Vamos lá.

Os direitos autorais são protegidos internacionalmente pela Convenção de Berna, assinada pelo Brasil e por cerca de outros 180 países. Cada um dos países signatários precisa incorporar em suas próprias leis o previsto na Convenção.

Ao tratar do prazo de proteção no sistema internacional, a Convenção de Berna determina, no art. 7 (8), que “Em quaisquer casos, a duração será regulada pela lei do país em que a proteção for reclamada (…)”. Ou seja, se os titulares dos direitos sobre o Mickey Mouse querem saber se o Mickey está ou não protegido (e em que medida) por direitos autorais no Brasil, precisam ler a lei brasileira para saber o que ela determina. Ou a australiana, ou japonesa, ou nigeriana ou costarriquenha, a depender do território onde queiram proteger o Mickey.

Cada país pode definir suas próprias regras de prazo de proteção e, dentro de seu território, é essa regra que vale, desde que em conformidade com os padrões mínimos da própria Convenção de Berna. Por exemplo, o prazo mínimo de proteção, segundo a Convenção de Berna, é da vida do autor mais cinquenta anos. Para obras cinematográficas (categoria em que o Steamboat Willie se enquadra), o prazo é de pelo menos 50 anos depois de a obra ter se tornado licitamente acessível ao público (art. 7 da Convenção de Berna).

O Brasil prevê proteção de obras audiovisuais por 70 anos contados da sua divulgação (art. 44 da lei brasileira de direitos autorais — lei 9.610/98). Se o Steamboat Willie foi lançado em 1928, seu ingresso em domínio público no Brasil se deu em 01 de janeiro de 1999, já que isso sempre ocorre em 01 de janeiro do ano subsequente àquele em que o prazo é completado.

É importante lembrar que o sistema internacional de direitos autorais prevê proteção independentemente de registro — ao contrário do que ocorre com as marcas. Voltamos a isso daqui a pouco. Assim, uma obra passível de proteção por direitos autorais estará protegida em todos os países signatários da Convenção de Berna, independentemente de sua origem ou do cumprimento de qualquer formalidade.

A lei brasileira é muito clara em afirmar que ela, a lei, será aplicada aos estrangeiros ou pessoas domiciliadas em país que assegure brasileiros reciprocidade de proteção (art. 2º).

Por isso, aplicamos a lei brasileira às obras audiovisuais dos Estados Unidos (e todos os demais países signatários de Berna). Assim, em razão do sistema internacional e da lei nacional, enquanto o Steamboat Willie fez sua estreia no domínio público dos Estados Unidos em 01 de janeiro de 2024, por aqui o domínio público do desenho animado e das imagens do Mickey que sejam extraídas dele já está fazendo bodas de prata.

Isso pode parecer estranho, mas é muito comum. Por exemplo, o Pequeno Príncipe entrou em domínio público no Brasil, e em todos os países que adotam o prazo de vida do autor + 70 anos, em 01 de janeiro de 2015, já que seu autor, Antoine de Saint Exupéry, havia morrido em 1944. Mas a obra segue protegida na França, por conta de regras locais de prorrogação de guerra.

Outro exemplo: a duração de direitos autorais na Bolívia é de 50 anos depois da morte do autor. Assim, em 01 de janeiro de 2024 entraram em domínio público no país todas das obras do escritor chileno Pablo Neruda, além daquelas de seu homônimo espanhol, o pintor Pablo Picasso. Enquanto isso, no Chile e na Espanha, as obras dos dois artistas seguem protegidas até 2044, já que ambos os países adotam prazo de proteção de vida do autor mais 70 anos. O mesmo vale para o Brasil — teremos que esperar mais 20 anos até que as obras de Pablo Neruda e de Pablo Picasso ingressem em domínio público por aqui.

Mas se me parece incontroverso que o desenho animado entrou em domínio público no Brasil em 1999, o mesmo não pode ser dito com tanta certeza acerca do Mickey. Vamos pensar em um exemplo bem fácil de ser entendido.

E.T., a obra-prima de Steven Spielberg, foi lançada nos cinemas em 1982. Mantida a regra da lei brasileira atual, o filme entra em domínio público por aqui em 2053 (1982 + 70 anos = 2052; as obras entram em domínio público sempre em 01 de janeiro do ano seguinte). A partir dessa data, o filme poderá ser usado com ou sem fins lucrativos por quem quiser. Poderá ser remontado, poderá gerar obras derivadas, poderá ter cada uma de suas cenas utilizadas independentemente. Inclusive a imagem do E.T., desde que extraída do filme, poderá ser usada, inclusive com fins comerciais. Como, por exemplo, esta famosa imagem aqui:

Contudo, o personagem E.T. é uma criação autônoma, também protegida por direitos autorais. A criação do personagem E.T. é atribuída a Carlo Rambaldi , que ganhou um Oscar por seu trabalho. Só para facilitar nosso exemplo, vamos admitir que a criação seja apenas dele. Rambaldi morreu em 2012. Assim, o prazo de proteção do personagem E.T. se esgotará em 2082, entrando em domínio público no ano seguinte. Ou seja, embora o uso da imagem do E.T. possa ser feito, entre 2053 e 2082, a partir do uso da obra audiovisual original, o uso separado do personagem E.T., para criação de obras independentes (um outro filme com o personagem, por exemplo), só a partir de 01 de janeiro de 2083. Parece-me que a mesma regra deve se aplicar ao Mickey Mouse. Exceto nos casos em que podem ser invocadas limitações aos direitos autorais, como citação (art. 46, III e VIII, da lei 9.610/98) e paródia (art. 47 da mesma lei). Mas para tais casos nem é necessário esperar o ingresso da obra em domínio público.

Registrar marca resolve?

Segundo matéria da revista Variety, a Walt Disney Animation Studios adaptou um trecho curto de Steamboat Willie para servir de marca. Um exemplo pode ser visto no Youtube. Será que o uso do personagem como marca pode impedir ou limitar o uso de Steamboat Willie por terceiros?

É improvável, por vários motivos.

Em primeiro lugar, porque a proteção a direitos autorais é mais ampla e automática, como mencionado acima. Obra criada está automaticamente protegida nos termos da Convenção de Berna, em todos os países que assinaram o tratado.

Com a propriedade industrial (marcas, patentes, desenhos industriais), as coisas se passam de outra forma. Neste caso, a proteção é territorial. Ou seja, se você quiser proteger uma marca em determinado país, é preciso pedir o registro naquele território. Além disso, e como consequência, a proteção não é automática. No Brasil, compete ao INPI — Instituto Nacional de Propriedade Industrial, conceder registro de marca para que sua propriedade seja completamente efetiva. Finalmente, a proteção se dá, salvo em alguns casos especiais, apenas para os produtos e serviços para os quais o registro foi demandado.

Verifiquei a base de dados do INPI (é pública, você pode ver também em https://busca.inpi.gov.br/pePI/) e existem 44 processos para registro da marca “Mickey Mouse” (e nenhum para “Steamboat Willie”). Quase todos são de Disney Enterprises e quase todos usando o nome “Mickey Mouse”, mas sem imagens a ele associadas. As únicas imagens em marcas mistas (ou seja, com imagens) são:

a) Processo 006126340 para identificar jogos, brinquedos e passatempos (classe 28)

b) Processo 006126324 para identificar aparelhos de comunicação em geral e seus componentes; discos e fitas em geral; aparelhos e instrumentos de reprodução, fotográficos, cinematográficos, óticos e de ensino (classe 9)

c) Processo 006126421 para identificar jornais, revistas e publicações periódicas em geral (classe 11).

Mesmo que nos EUA os titulares de direitos autorais tenham tido a ideia de pleitear o registro de fragmento do Steamboat Willie como marca, essa proteção é restrita aos EUA e, provavelmente, à classe de produtos ou serviços a que seu registro se destina.

A territorialidade de proteção pode levar a algumas confusões, como a briga judicial envolvendo o uso da marca iphone, que no Brasil foi registrada originalmente pela Gradiente (em seu telefone G Gradiente Iphone), alguns anos antes de a Apple lançar seu smartphone. Mas essa é uma regra internacional da propriedade industrial — o registro é segmentado, ao contrário dos direitos autorais.

Alegar que o uso da marca registrada poderia impedir o uso da obra em domínio público para além das categorias de produtos ou serviços nas quais a marca está registrada seria uma medida de privatização do que é público, de abuso do direito do titular da marca. As marcas são protegidas para situações muito específicas: identificar produtos ou serviços de modo a impedir confusão entre consumidores e, consequentemente, atos de concorrência desleal.

Além disso, a própria lei de propriedade industrial (Lei 9.279/96) determina, em seu art. 132, IV, que o titular da marca não poderá impedir a citação da marca em discurso, obra científica ou literária ou qualquer outra publicação, desde que sem conotação comercial e sem prejuízo para seu caráter distintivo.

Ou seja, se até uma marca novinha em folha, altamente distintiva e de elevado valor de mercado pode ser usada em obras intelectuais (textos, filmes etc.) desde que observados os requisitos legais, com mais razão ainda é possível fazer uso de uma marca baseada em obra já em domínio público em outras obras intelectuais, como livros, filmes e fotografias.

Parece-me, portanto, improvável a alegação de violação de marca se seu uso por terceiro não se destinar a identificar produtos ou serviços colocados no comércio, nas classes hoje protegidas ou a elas assemelhadas, tendo como consequência confusão nos consumidores e eventual desvio de clientela da Disney.

Em conclusão

Que bom para os Estados Unidos que os efeitos nefastos da prorrogação de prazo de proteção de direitos autorais, ocorrida lá em 1998, começam a ser superados. De nossa parte, temos dois motivos para comemorar.

O primeiro é que nossa lei mantém há 26 anos o prazo atual, de modo que não experimentamos recentemente a seca estadunidense de ingresso de obras em domínio público.

O segundo é que, neste ano, no Brasil, ingressam em domínio público as obras do pintor Francis Picabia, do dramaturgo Eugene O’Neill e dos escritores Jorge de Lima e, o melhor de tudo, Graciliano Ramos — um dos maiores escritores da história deste país. Ano que vem tem mais — e está sensacional. Quer um spoiler de quem entra em domínio público em 2025? Dá uma olhada aqui.

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O Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio) é uma associação fundada em 2013 por professores de diversas instituições acadêmicas com a missão de assegurar que o Brasil e o Sul Global possam responder de maneira criativa às oportunidades fornecidas pela tecnologia na era digital, e que seus potenciais benefícios sejam amplamente compartilhados pela sociedade. Com forte conexão com as mais prestigiadas universidades e centros de pesquisa pelo mundo afora, o ITS Rio realizou eventos acadêmicos pioneiros, como o Artificial Intelligence & Inclusion, sediado no Museu do Amanhã em 2017, além de promover o seu programa anual de intercâmbio para professores e pesquisadores estrangeiros.

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O Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio estuda o impacto e o futuro da tecnologia no Brasil e no mundo. — www.itsrio.org