Os benefícios das tecnologias distribuídas para inovações de interesse público

1. HISTÓRICO E FUNCIONAMENTO
Em 31 de outubro de 2008, um indivíduo ou grupo de pessoas usando o pseudônimo Satoshi Nakamoto iniciou uma discussão na lista de e-mail dos cypherpunks, um fórum de tecnologia online dedicado principalmente a cientistas da computação e afins. Pela primeira vez em mais de 25 anos de pesquisas (Lamport, Pease, Shostak, 1982) e propostas teóricas no campo, a ideia de dinheiro eletrônico estava prestes a ser implementada com sucesso em um protocolo real, o que ocorreu em janeiro de 2009, quando o Bitcoin foi lançado. Com casos de uso limitados nos primeiros 4 anos de existência, foi em 2013 que a tecnologia alcançou o mainstream, através de uma combinação de fatores macroeconômicos, políticos e midiáticos. Desde então, vem evoluindo bastante, em boa medida devido à atenção e aos investimentos de grandes empresas, startups e fundos focados no desenvolvimento do ecossistema que circunda o protocolo. Além disso, especialmente a partir de 2015, muitos mercados (Bheehmaiah, 2015) demonstraram um interesse ainda maior na tecnologia subjacente, a qual possibilitou ao Bitcoin funcionar como moeda digital a partir de uma rede distribuída sem intermediários públicos ou privados: a blockchain.
Trata-se de uma tecnologia que se baseia na criptografia aplicada para manter um banco de dados de registros continuamente crescente, protegendo todas as informações registradas de adulterações, mesmo por seus operadores. A implementação de uma blockchain é baseada em um conjunto de softwares que permite aos computadores se comunicarem diretamente através de uma rede distribuída, com o diferencial de que nela nenhum usuário tem mais poderes do que qualquer outro poderia ter, dito de forma simplificada. Assim, essas bases de dados são periodicamente atualizadas com novas informações que abrangem transações ou registros feitos recentemente e o consenso é automaticamente restabelecido em breves intervalos. Isso assegura que todos os usuários conectados à rede estejam sempre vendo como verdadeiro o mesmo conjunto de informações. Em outras palavras, cada agente conectado à rede tem a mesma cópia exata do banco de dados, com novas informações verificadas sendo adicionadas a ele depois de passar por processos inteiramente descentralizados de validação e auditoria. São esses os responsáveis por garantir a qualquer informação processada e armazenada pela tecnologia blockchain os atributos específicos de maior valor para boa parte das aplicações possíveis a partir dela: imutabilidade, temporalidade, transparência e disponibilidade dos dados.
Tomando o Bitcoin como exemplo, sua blockchain funciona como uma espécie de livro-razão público que contabiliza o número de moedas que pertence a cada usuário. Um novo bloco de transações adicionado à cadeia se assemelha a novas páginas sendo preenchidas neste livro contábil, a fim de preservar tanto o histórico completo de todas as moedas que mudaram de mãos na rede quanto a situação atual de todos os usuários (ou seja, o resumo do último valor que possuem em conta naquele momento). É importante destacar que blockchain é o termo comumente usado para descrever tanto a tecnologia em si quanto o banco de dados público que ela gera e mantém atualizado. Por sua vez, quando se fala em consenso significa dizer que existe um banco de dados comum ao qual todos podem propor mudanças que a própria rede irá verificar, rejeitando dados fraudulentos e propagando apenas a informação adequada, estabelecendo consenso periodicamente entre todos os nós da rede. A principal conquista desta tecnologia é ser construída a partir de um mecanismo complexo que, baseado em poder computacional e incentivos econômicos, torna qualquer tentativa de contornar o processo de validação proibitivamente dispendiosa, inviabilizando fraudes na prática.
Sendo uma tecnologia projetada para funcionar como uma máquina de confiança, a blockchain é baseada em três elementos-chave: identidade, propriedade e verificação. Em suma, o que faz uma blockchain é permitir aos usuários prover facilmente identidades, com as quais estes se tornam capazes de proteger a propriedade de seus ativos digitais e, ainda, verificar todas as transações que foram ou estão sendo feitas por si mesmos.
Identidade:
O funcionamento de uma blockchain é baseado no uso de assinaturas digitais provenientes da criptografia assimétrica. Cada usuário recebe um conjunto de dois códigos digitais correspondentes, uma na forma de “chave pública”, semelhante a um número de conta público e outro sendo uma “chave privada”, semelhante a uma senha.
Propriedade:
A blockchain mantém um banco de dados continuamente crescente, protegendo todo o histórico de transações do que está sendo operado, mesmo das tentativas de fraudes que possam vir de seus próprios operadores. Além do enorme poder computacional que comumente protege uma blockchain, há também desincentivos econômicos que tornam as fraudes financeiramente inúteis ou mesmo inviáveis na maioria dos casos práticos em que poderiam ser tentadas.
Verificação:
Para cada rede blockchain, existe um banco de dados comum ao qual todos podem propor mudanças e a própria rede cuidará automaticamente da validação. Nesse sentido, todos os usuários conectados à rede veem as mesmas informações, já que cada nó tem a mesma e exata cópia do banco de dados, com novas informações verificadas sendo adicionadas a ele. Essa capacidade de auditoria pública torna a blockchain um sistema de singular transparência.
Assim, tais mecanismos garantem, grosso modo, que apenas o usuário legítimo possa alterar as informações referentes a ele e seus ativos na rede. No caso do protocolo Bitcoin, por exemplo, apenas o detentor de um dado saldo em bitcoins pode propagar para a rede as informações necessárias para transferi-los a outra pessoa, uma vez que qualquer outra tentativa (maliciosa) será rejeitada pelo código que regula o sistema. A partir disso, é possível concluir que o consenso entre as partes é mantido mesmo em uma esfera muito dinâmica.
O que a blockchain fornece é baseado em uma sequência de elementos:
1. “Prova de trabalho”:
Significa que se você é um minerador (um jargão para os usuários que se conectam à rede como um nó de confirmação de transações) você precisa oferecer uma solução para um enigma matemático que exige muito poder computacional para ser solucionado, a fim de poder adicionar novas informações ao banco de dados que constitui um blockchain per se.
2. Imutabilidade:
Baseia-se em funções criptográficas, assegurando uma característica importante do sistema: as informações são fáceis de se verificar, mas é praticamente impossível para uma entidade ou indivíduo tentar alterá-las unilateralmente.
3. Auditoria:
Uma vez validada pelo código do sistema executado simultaneamente por uma rede inteira de milhares de pares e propagada por ela, a fim de ser adicionada às suas próprias cópias do blockchain, esta informação tem sua validade auditada publicamente por todos, de acordo com a informação em si, e também metadados como a autoria de “quem a gravou” e a marcação de tempo referente a “quando foi gravada”. Tudo pode ser enxergado com total transparência.
Por conta desse rigor técnico e das consequentes possibilidades abertas é que se torna possível ver a blockchain como uma tecnologia com potencial real de transformação, especialmente pelo que ela permite em termos de confiabilidade e segurança. Novos usos para blockchain, cujo código ou motivações devem muito à implementação original lançada no Bitcoin, começam no âmbito financeiro, mas se estendem pelos mais variados campos em que a intermediação tem sido uma necessidade. O potencial da tecnologia blockchain reside na sua capacidade de oferecer proteção contra fraudes e censuras de forma descentralizada, garantindo novos campos para um conjunto mais equitativo de instituições digitais (Radu, 2015), não importando se eles permitem o processamento de votos, pagamentos ou uma de suas características mais promissoras: contratos inteligentes.
Para os pesquisadores Aaron Wright e Primavera De Filippi (2015), a mudança de paradigma trazida pela difusão da blockchain, seguida pela crescente implementação de sistemas descentralizados, levará ao surgimento da Lex Cryptographica (DE FILIPPI, WRIGHT , 2015), o que significa um conjunto de regras administradas por meio de contratos inteligentes auto-executáveis. Se, ao invés de dados correspondentes a números ou informações financeiras, como no caso do Bitcoin, um banco de dados construído e gerado pela tecnologia blockchain armazena dados de outras naturezas, é possível manter uma ampla gama de novos serviços com as qualidades particulares que ela traz sempre aos dados que processa.
Já entre 1993 e 1997, o criptógrafo Nick Szabo introduziu a partir de diferentes trabalhos a ideia seminal de smart contracts e do que eles poderiam se tornar. Desde 2014, passou-se da mera visão teórica para implementações práticas, principalmente com o surgimento da plataforma Ethereum. Trata-se de um sistema descentralizado baseado na blockchain e construído para ser uma espécie de supercomputador global cujas capacidades de se criar aplicações distribuídas das mais variadas formas são mantidas pelo conjunto de usuários que integram sua rede peer-to-peer. Uma relação entre duas mentes (Szabo, 1997), bem como a formalização dela, é o ponto de partida para o conceito de “contrato”.
Em termos práticos, um contrato pode ser entendido como o estabelecimento de ações e os possíveis critérios aplicáveis para julgá-las ou regulá-las, uma vez que um acordo comum tenha sido feito entre duas ou mais partes. Neste caso, adicionar “inteligência” em sentido computacional aos contratos consiste na capacidade de torná-los digitais, mais automatizados e baseados em hardware e software comumente usados (Szabo, 1997). Isso poderia reduzir significativamente a falha humana, tornando menos custosos os protocolos de controle em torno da criação e da manutenção de contratos, já que nos contratos inteligentes estes são automaticamente projetados para avaliar se certas cláusulas foram atendidas ou não. Em um ambiente digital marcado por grande automação, procedimentos de controle como auditoria poderiam exigir muito menos tempo e recursos financeiros do que as opções tradicionais. Isso também abre espaço para a “auto-execução” de contratos digitais, indiscutivelmente o principal benefício dessa tecnologia, sempre que a validação de suas cláusulas fosse processada automaticamente, como apontado por De Filippi e Wright:
Usando um banco de dados distribuído, como a blockchain, as partes podem confirmar que um evento ou condição ocorreu de fato sem a necessidade de um terceiro. Como resultado, a tecnologia deu vida a um conceito teórico formulado pela primeira vez em 1997: contratos digitais, computáveis, em que o desempenho e o cumprimento das condições contratuais ocorrem automaticamente, sem a necessidade de intervenção humana […] Em alguns casos, contratos inteligentes representam a implementação de um acordo contratual, cujas disposições legais foram formalizadas em código computacional. As partes contratantes podem assim estruturar suas relações de maneira mais eficiente, de maneira auto-executável e sem a ambigüidade das palavras. A confiança no código é o que permite às partes interessadas modelar o desempenho contratual e simular o desempenho do contrato antes da execução. Em outros casos, os contratos inteligentes introduzem novos relacionamentos que são definidos e aplicados automaticamente pelo código, mas que não estão vinculados a quaisquer direitos ou obrigações contratuais subjacentes. Na medida em que uma blockchain permite a implementação de transações auto-executáveis, as partes podem transacionar livremente entre si, sem a necessidade técnica de entrar em um acordo contratual padrão.
(DE FILIPPI, WRIGHT, 2015).
Em termos de grandes redes abertas baseadas em blockchain, atualmente os principais destaques são os protocolos Bitcoin e Ethereum. De formas diferentes, mas igualmente válidas, ambas permitem a implementação de contratos inteligentes. O Ethereum permite que qualquer usuário crie e execute contratos inteligentes implantados em sua blockchain, associados à sua própria linguagem de programação, com o objetivo de tornar todo o processo o mais simples possível. Embora cada uma das dezenas de projetos sérios de blockchain operando hoje tenha vantagens e limitações particulares, é especialmente importante enfatizar que a Ethereum foi o primeiro dentre eles a ser criado explicitamente para manter um blockchain em que é fácil implantar contratos inteligentes ou aplicações descentralizadas mais complexas.
Além da plataforma nativa, uma vez que opera como uma espécie de backbone no qual projetos em larga escala podem ser construídos, novas aplicações já estão começando a afetar mercados antes dominados por poucos players: Augur (mercados futuros descentralizados), Maker (moedas digitais estáveis e serviços bancários independentes), 0x (um protocolo autônomo que dá base a um sistema financeiro inteiramente digital), além de DAOstack (um sistema operacional para colaboração massiva) e Aragon (um projeto que visa desintermediar a criação e manutenção de estruturas organizacionais), para citar apenas alguns dos casos mais proeminentes.
2. TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E ECONÔMICAS
A partir dos anos 2000, uma maior descentralização provou ser fundamental para a resiliência de muitas tecnologias inovadoras. Serviços como o Napster, que apesar de descentralizado tinha uma empresa central como co-responsável, acabaram sendo completamente desligados, como resultado de batalhas legais envolvendo direitos autorais e afins. Alguns desses serviços foram interrompidos independentemente da natureza do conteúdo compartilhado, prejudicando o conjunto total de usuários, incluindo aqueles que fizeram usos lícitos deles. No entanto, alternativas sucessoras foram criadas com foco em maior descentralização, fornecendo aos usuários conexões diretas entre si P2P), sem a necessidade de grandes pontos centrais suscetíveis a falhas. Isso levou ferramentas como a rede Gnutella a se tornarem “imparáveis” do ponto de vista tecnológico, embora o uso ilegal dessas e de outras redes seja devidamente combatido na esfera legal tradicional.
No que diz respeito à evolução das redes descentralizadas, é importante reconhecer o legado permanente que tais sistemas deixaram no universo da economia digital. Ao proporem mudanças através da chamada “inovação sem permissão”, empreendedores e ativistas estabeleceram certa oposição à forma como muitos negócios tradicionais vinham sendo conduzidos. Seja pela ineficiência dos velhos modelos em que se baseavam ou por questões ideológicas que levaram alguns a propor uma maior democratização no acesso à cultura e à informação. O ciclo acelerado de inovação que marcou o crescimento da internet na última década e os desdobramentos dele são amplamente responsáveis pela inevitável assimilação de algumas dessas recentes mudanças.
O anseio pela inovação constante do usuário, combinado com os desafios das tecnologias descentralizadas, forçou grandes empresas a adaptar seus modelos e práticas. Assim, pode-se dizer que o novo modelo de streaming de conteúdo multimídia, com música e filmes pelos quais se paga conjuntamente através de uma assinatura mensal foi uma resposta largamente influenciada pela assimilação de mudanças recentes no consumo dessas mídias (vide Netflix, Spotify e outros). Sem a transformação controversa iniciada pelo Napster, é provável que, mesmo com o advento da Internet, o mercado ainda estivesse preso a modelos antiquados para comercializar conteúdo multimídia, emulando o mundo analógico no universo digital. Mesmo com a alternância de empresas ou projetos como líderes ou referências de mercado, a descentralização e seu impacto nos modelos de negócios se configura como tendência incontestável e crescente. Tal qual introduzido anteriormente, em complemento ao histórico apresentado, a tecnologia blockchain pode se firmar como uma nova e mais forte fronteira desse fenômeno, dado o impacto do que pode gerar num amplo leque de áreas.
Em Por que as escolas de negócios precisam ensinar sobre o Blockchain, o pesquisador Kariappa Bheemaiah (2015) expõe claramente os pilares que fazem da blockchain um grande trunfo para a inovação, tanto pelos aspectos técnicos sem precedentes quanto pelo poder que tem de acelerar e ampliar o efeito positivo de outros arranjos descentralizadores que o precederam:
[…] a ‘Internet de todas as coisas’ está se tornando cada vez mais parte da realidade empresarial. Hoje, as empresas e as sociedades estão percebendo que a linha entre as existências física e virtual está começando a se obscurecer a uma taxa crescente. Um efeito secundário da ‘internet de tudo’ é que ela também criará uma ‘economia de tudo’ (Panikkar, 2015), todo dispositivo capaz de se conectar à internet se torna um ponto de transação e geração de valor econômico para consumidores e produtores-consumidores em uma economia compartilhada. […] As possibilidades oferecidas pela tecnologia blockchain começam a fazer sentido econômico. […] Além disso, as arquiteturas descentralizadas oferecem melhores benefícios de custo para as empresas, pois o compartilhamento de recursos em redes distribuídas remove a dependência de um servidor central, otimiza o uso de recursos e reduz os custos. […] As redes distribuídas começam a atuar como canais de transações baseadas em valor e, à luz das vantagens mencionadas, uma nova geração de negócios baseados em blockchain está começando a mostrar sinais de ruptura em vários domínios do mercado. (Bheemaiah, 2015)
Finalmente, pode-se entender, como explicado pelo professor e pesquisador Ronaldo Lemos (2017), porque as otimizações e ganhos de eficiência já propiciados pela blockchain até aqui são apenas a ponta de lança de um processo em aprofundamento constante. O estado atual da tecnologia e, principalmente, de seus impactos não devem ser considerados como finais, uma vez que se trata de uma tecnologia basilar, fundacional, em cima da qual muito mais está e será muito provavelmente construído, especialmente no âmbito do interesse público:
“Assim como protocolos que permitiram a criação da internet como a conhecemos hoje, como o TCP/IP, a blockchain é também uma tecnologia livre e aberta, que não pertence a ninguém nem foi “patenteada” por seus criadores. Ao contrária, ela se tornou uma tecnologia aberta para o uso por parte de qualquer pessoa. Por isso mesmo ela se converteu em uma tecnologia fundacional, tal como foi o TCP/IP, ou ainda, a linguagem HTML que originou a World Wide Web (WWW). Por essa razão, a blockchain tem propriedades que podem ser descritas como “generativas”, tal qual a Internet. Por isso, acredito que essa tecnologia pode levar ao surgimento de muitas aplicações de interesse público. Dentre elas, a possibilidade de votar pela internet, plataformas online de gestão de orçamentos participativos, ou ainda, um novo conjunto de ferramentas de organização social.” (Lemos, 2017)
3. APLICAÇÕES DE INTERESSE PÚBLICO
Uma das razões para se entusiasmar com as tecnologias baseadas na blockchain é que elas podem ter um baixo custo de implementação, se comparadas a outras. A blockchain oferece uma oportunidade de inovação real, não só no campo do setor privado, como vem acontecendo até agora, mas no setor público. Ela é uma ferramenta perfeita para todo e qualquer empreendedor social interessado em mudar para melhor o Brasil. Como muito bem colocado em artigo que analisa a noção de interesse público sob a perspectiva de um Estado em transformação, muito cara à ideia de transformação digital nas instituições públicas, (Saddy, 2010) traz dentro do interesse público os conceitos de harmonia e bem-estar geral. Ambos estão diretamente relacionados às ações tomadas no âmbito da democracia representativa, em especial na medida em que os representantes zelam pela resolução de conflitos que possam vir do desejo de imposição das vontades de um indivíduo sobre outros. A partir disso, três pilares cuja preservação se mostram essenciais à promoção do interesse público devem ser destacados: a legalidade, a legitimidade e a licitude.
APERFEIÇOAMENTO DA DEMOCRACIA
Pode-se pensar em uma aplicação importante e imediata para a blockchain no Brasil, que atende um anseio geral do país com relação ao interesse público, integrada diretamente aos pilares já mencionados. A Constituição brasileira de 1988 criou um mecanismo democrático até então pouco utilizado. Ele assegura que se 1% dos eleitores assinarem uma petição em apoio a uma nova lei, o Congresso brasileiro deve reconhecê-la como um projeto de lei oficial proposto pelo povo e votá-lo como tal. Hoje, seriam necessárias cerca de 1,5 milhão de assinaturas para isso. No entanto, a única forma que existia para coletar essas assinaturas era o papel, o que carrega inúmeras limitações.
Em face dessas limitações “tecnológicas” do papel, não é surpresa que, desde 1988, esse mecanismo de democracia direta não foi usado nem sequer uma vez da forma como ele foi previsto na Constituição. Nos casos em que houve a mobilização popular, mais de 1,5 milhão de assinaturas foram colhidas (como é o caso do projeto da “Ficha Limpa” ou das “10 Medidas Contra a Corrupção”), mas o projeto de lei não foi aceito pelo Congresso como sendo “do povo”. Foi preciso um deputado se voluntariar e propor ele mesmo o projeto, em seu próprio nome. A razão para tal é que é praticamente impossível auditar 1,5 milhão de assinaturas colhidas em papel. A chance de fraude existe e o trabalho de conferência é grande demais.
É aí que entra a blockchain. E se as assinaturas pudessem ser coletadas digitalmente e registradas na blockchain, sendo já pré-auditadas no momento da coleta? Pois é exatamente isso que o Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio) construiu, uma aplicação viabilizada pelo uso da tecnologia blockchain que permite auditar desde o início a identidade dos eleitores, usando para isso fatores múltiplos (incluindo o número de seu CPF, título de eleitor e até mesmo seu número de celular). Com isso, o eleitor pode expressar formalmente seu apoio a um projeto de lei de iniciativa popular, tudo isso por meio de seu telefone celular conectado à internet. Essa ferramenta permite à sociedade brasileira, por exemplo, propor diretamente no Congresso Nacional (ou nas Assembleias Legislativas dos Estados, ou ainda, nas Câmara de Vereadores) seus projetos de lei impulsionados pela mobilização social.
A blockchain é perfeita para esta finalidade. Ela cria um registro único e imutável dessas assinaturas. Esse registro é facilmente auditável, diferente do papel. Devido à blockchain, conjugada com outros mecanismos de certificação provenientes da criptografia aplicada, a probabilidade de fraude é próxima de 0. Chamada Mudamos e premiada pelo Desafio de Impacto Social do Google em 2016, a plataforma é hoje uma ferramenta única para assinatura de projetos de lei de iniciativa popular de forma simples e efetiva. A arquitetura proporcionada pela Mudamos também abre caminho para a expansão desses conceitos e até mesmo para a criação de uma identidade digital descentralizada para o exercício cívico em manifestação da vontade política de qualquer cidadão.
Quando um usuário se registra no aplicativo, ele também está criando uma “carteira” na blockchain, com uma chave criptográfica pública que o identifica digitalmente. O aplicativo Mudamos reconhece a identidade dos dados que o usuário fornece, como seu número de segurança social, registro de eleitor, nome e CEP. Ao assinar uma conta no aplicativo, o usuário faz isso por meio de uma chave que só poderia estar contida em seu celular. O conteúdo da assinatura, conforme submetido pelo Sistema Mudamos Blockchain, é armazenado, assim como os dados referentes à origem desta assinatura, o ID do celular e outros metadados que podem ser acessado para fins auditoria pública, sempre que uma possível fraude seja detectada. No processo análogo, quando é feito um caminho analógico (papel), qualquer tentativa de identificar a data, hora e local, ou até mesmo a caneta que assinou o formulário, trata-se de algo impossível, já que esses rastros não são propriamente registrados. A diferença em ter um processo digital em que é possível dar unidade às ações dos usuários é que a interação desses usuários com a rede pode produzir informações que fortalecem sua identidade digital.
Quanto mais interações com diferentes aplicativos ou serviços, mais credibilidade ganha essa forma de identidade digital descentralizada. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que o aplicativo Mudamos experimenta o uso de chaves criptográficas para certificar assinaturas em contas de iniciativa popular, ele também se torna um aplicativo capaz de autenticar certas informações de identidade de seus usuários, especialmente as necessárias para o exercício de outros direitos políticos ou acesso a serviços governamentais no futuro previsível.
SAÚDE
Nos próximos anos, uma das áreas mais beneficiadas por transformações trazidas pela blockchain será a saúde. Responsável pela armazenagem e a troca de dados extremamente sensíveis sobre a vida de seus usuários, os sistemas público e privado de saúde quase sempre enfrentam desafios na guarda das informações de que precisam para operar corretamente. Principalmente nos quesitos privacidade e interoperabilidade, uma solução capaz de integrar de forma coesa dados de saúde vindos de diferentes sistemas vai sempre representar um grande avanço para o interesse público, pela maiores eficiência e liberdade de escolha que promove ao cidadão. Ademais, a proteção parcial ou total da identidade atrelada aos dados privados sem prejudicar a prestação de serviços que dependem deles iria representar um inédito avanço que combinaria a adequada preservação de direitos humanos fundamentais, como a privacidade e o acesso a serviços humanitários em regiões ou momentos de crise.
O avanço de novas tecnologias que promovem automação, transparência e prevenção de fraudes, com especial destaque para a blockchain, pode ampliar o acesso massivo a essas qualidades, tão ausentes para a maior parte da população brasileira quando se fala de saúde. Ainda, a possibilidade de se guardar certas informações de saúde em forma estruturada na blockchain permitiria uma padronização de como esses dados são lançados em uma rede que é de acesso público, capaz de promover inclusão não somente no acesso em si, como uma maior participação dos cidadãos sobre a própria gestão financeira e profissional dos recursos.
Por exemplo, ao fazer uso de APIs para registro ou leitura desses dados, hospitais e instituições públicas poderiam seguir usando seus sistemas próprios de gerência de dados médicos, ao mesmo tempo em que informações que venham a interessar a variadas partes poderiam ser registradas de forma imutável em uma blockchain pública ou permissionada, a depender da aplicação. O próprio lançamento desses dados na blockchain, como os resultados de um exame em particular, poderia seguir diferentes configurações quanto à forma como são gravados. Em alguns casos poderiam ser publicados abertamente, resguardando apenas a identidade do indivíduo correspondente aos resultados de um dado exame. Em outros casos, os dados poderiam estar criptografados com acesso exclusivo das informações por parte do paciente ou de pessoas/instituições de confiança, além de variados cenários possíveis.
Segundo relatório da consultoria Deloitte, pode-se trazer ainda mais transformações substanciais à gestão digital de informações no campo da saúde:
Descentralização da Confiança & Redução dos Custos de Transação
Sem a figura de uma cadeia centralizada com múltiplos intermediários e custodiantes privados, o que fica na blockchain pode ser acessado a partir de uma base comum de informações acessível de forma permanente por muito mais agentes.
Gerenciamento de Identidades Simples e Seguro
Mais fácil acesso a uma infraestrutura comum para o gerenciamento de identidades e autenticidade dos registros de cada paciente, fazendo uso do esquema de chaves públicas e privadas conforme implementado em blockchains como as de inúmeros protocolos descentralizados já existentes.
Acesso Permissionado de Dados
Conjugado às possibilidades de descentralização no acesso dos dados, o mecanismo de identificação do detentor original dos dados pode permitir configurações de acesso condicionado. Isso é, inicialmente, dados guardados de forma secreta na rede poderiam ser revelados a certos indivíduos ou instituições, de acordo com a determinação do paciente a quem pertença as informações. Tudo feito de forma muito mais segura que nos meios tradicionais, controlado com a rigidez da criptografia avançada.
OUTRAS APLICAÇÕES DE INTERESSE PÚBLICO
EDUCAÇÃO
Escolas, cursos técnicos, cursos de idiomas, universidades e demais instituições de ensino podem digitalizar seus certificados e registrar os identificadores únicos de cada um deles na blockchain. Essa prática torna muito mais fáceis o combate a fraudes e a validação da autenticidade dos diplomas por parte de empregadores ou outras partes interessadas. Por se tratar de uma abordagem digital para a criação e o controle de certificações, adicionalmente podem ser dispensados outros gastos com segurança, impressão de diplomas, provisão de vias adicionais dos certificados, dentre outros.
CADEIA DE SUPRIMENTOS
Qualquer grande negócio, em especial aqueles ligados à alimentação ou logística, cujo trajeto entre a produção e a entrega ao consumidor final passe por múltiplas etapas em que algumas ou a totalidade delas seja de especial importância pode se beneficiar profundamente. Certificações de produção orgânica, rastreio detalhado de cafés especiais, rastreio de safras do produtor ao consumidor, selos de recebimento e envio para medidas ligadas à segurança da alimentação, rastreamento de entregas com registro infraudável, transparente e em tempo real.
MÍDIA
Autores, editoras e veículos de comunicação podem registrar suas criações intelectuais digitalizadas na blockchain e assegurar quando e por quem foram criadas. Isso permite uma forma desburocratizada, rápida e barata de se gerar provas de existência da sua criação com a finalidade de provar que aquilo foi criado por você antes de qualquer outra pessoa, podendo ser um importante mecanismo no combate ao plágio e na prevenção de fraudes documentais.
GOVERNO
A tecnologia blockchain pode ser uma importante aliada na eficiência dos gastos públicos e na transparência das informações referentes ao governo. Ao registrar dados essenciais referentes à prestação de serviços na blockchain, as instituições públicas podem ser auditadas pela população em tempo real. Tudo isso de forma segura, dado que uma vez registrados a blockchain assegura a integridade das informações, fazendo com que elas não possam ser alteradas para fins de censura, fraude ou corrupção, venham elas do setor público ou privado.
FINANÇAS
Com a emergência e o sucesso no uso do protocolo Bitcoin enquanto dinheiro digital e meio de pagamento descentralizado, assegurado pela tecnologia blockchain que foi criada para fazê-lo funcionar adequadamente, o mundo das finanças testemunhou a abertura de um espaço inédito de raro potencial: a digitalização de ativos. A tecnologia blockchain permite pela primeira vez criar bens únicos nos meios digitais, impossíveis de se falsificar por meio do “copiar e colar” tão comum em muito do que corre pela internet, como músicas, filmes e afins. Isso abre espaço para sistemas completamente novos para emissão e transferência de ações, títulos, pontos de fidelidade, cupons de desconto, “moedas” alternativas e outros ativos. Tudo feito de forma rápida e direta, operando com segurança e baixo custo sem depender de um intermediário (que cobraria taxas altíssimas) por trás.
SEGUROS
Uma das principais questões presentes no mercado de seguros é: como coletar e salvar, de forma simples e rápida, provas documentais que permitam à seguradora distinguir casos legítimos de fraudes. Nesse sentido, por exemplo, por meio da integração da tecnologia blockchain ao aplicativo de uma seguradora de veículos ou saúde, o cliente pode documentar o fato em questão (como fotografar as evidências de uma batida com seu veículo ou um acidente pessoal) e registrar os documentos em sua forma digital na blockchain. Uma vez registrados na blockchain, a seguradora poderá ter certeza da exata data de ocorrência e da autenticidade dessas evidências coletadas, certificando-se que há total correspondência entre o que e quando recebeu do usuário em termos de provas e o que foi registrado pelas aplicações oficiais.
4. CONCLUSÕES
Quanto ao que realmente transforma na prática, blockchain é sinônimo de consenso e confiança. Pare para pensar em quantas coisas você confiou até o momento, somente no dia de hoje. Sinais de trânsito, orientações médicas, o poder de compra do dinheiro que você guarda no bolso, etc. Todas as relações humanas são baseadas na confiança. Isso é fruto da óbvia impossibilidade de que todo mundo saiba tudo sobre todas as coisas. Assim como na maioria dos casos compramos alimentos ou roupas, pela inviabilidade prática de produzirmos nós mesmos tudo o que necessitamos para viver, assim também é com a confiança. Em um mundo hiperconectado, estamos a todo tempo lidando com o desconhecido, seja na forma de pessoas, instituições, leis ou o que seja. Enquanto sociedade, historicamente resolvemos essa questão delegando a tarefa de atribuir confiança em alguns processos a terceiros: governos, bancos, corretoras, auditores e tantos outros.
É esse o campo em que a blockchain fará maior diferença nesta década. Agora que a tecnologia existe, não será “desinventada” e, pelo contrário, seguirá evoluindo a passos largos em potencial e escalabilidade, a forma como entramos em acordo nos mais diversos casos pode mudar para melhor. Tudo que permeia a confiança pode ser direta ou indiretamente impactado pela tecnologia blockchain, uma vez que ela se presta a uma única coisa: estabelecer uma forma de que cidadãos estejam em acordo a respeito de informações cruciais para uma dada relação entre eles, sem que um único poder centralizado seja necessário para mediar o processo. Mais do que mudar nossa forma de pagar pelas coisas ou permitir o importante acesso em mais larga escala a novos produtos financeiros, a blockchain redefinirá por completo a forma como nos relacionamos com o crescente desconhecido do mundo contemporâneo. Assim, entendê-la é se abrir para a infinidade de novas possibilidades que já saem do papel e começam a afetar a vida de tantas pessoas mundo afora.
A blockchain, contudo, não é uma panaceia capaz de resolver todos os problemas do planeta. Se olharmos atentamente, essas possibilidades são apenas um pequeno passo. No entanto, um passo muito promissor. Trata-se de uma ferramenta que vai além da tecnologia, produzindo um impacto real na sociedade e nos modos de vida. A blockchain é um poderoso mecanismo para o desenho de outras formas de poder e gestão, seja por meio de novos arranjos institucionais ou pela melhoria dos que já existem. Uma das principais razões para a parte legítima de entusiasmo que há em seu entorno é a possibilidade real de criação de novas práticas sociais, capazes de endereçar problemas reais do mundo que habitamos hoje. De modo que, brevemente, essa nova vivência possa reduzir drasticamente as brechas onde há corrupção, para que possam crescer níveis inéditos de transparência, responsabilidade individual e participação social.

*Gabriel Aleixo é pesquisador do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio.